A Outra Margem de Luís Filipe Rocha (Portugal) foi hoje exibido - onze anos após a sua estreia comercial - no Centro Cultural Olga de Cadaval, em Sintra, no âmbito da décima-segunda edição do LEFFEST - Lisbon & Sintra Film Festival que decorre até ao próximo dia 25 de Novembro em Sintra e em Lisboa.
Ricardo (Filipe Duarte) é transformista e chora a morte de um namorado. Vítima do desgosto, tenta também o suicídio fazendo com que Maria (Maria d'Aires), a irmã com quem não tem contacto o visite em Lisboa. De regresso à sua Amarante natal, Ricardo estabelece contacto com uma velha amizade e conhece Vasco (Tomás Almeida), portador de Trissomia 21 que lhe restitui uma já perdida alegria de e pela vida.
Quando o espectador de um filme, ouvinte de uma música ou apreciador de uma obra de arte se questiona sobre a sua pertinência para o futuro, a primeira grande pergunta que surge é se essa obra em questão irá "ter vida" depois da sua criação. Nesta perspectiva, A Outra Margem datado de 2007, visto hoje uma década depois, não poderia estar mais actual num mundo que perde aceleradamente a sua inocência... se é que esta alguma vez esteve presente nas últimas décadas... ou mesmo em alguma época passada.
Os primeiros instantes de A Outra Margem levam o espectador para o interior de uma casa de espectáculos nocturnos onde um vivido "Ricardo" interpreta o seu último show de transformismo dando cor a uma canção e a um visual que não são os seus. O seu rosto coberto de maquilhagem e de uma expressão over the top típica do espectáculo que tem em cena esconde, por sua vez, toda uma tristeza enorme pela perda daquele que, até então, tinha sido o seu único (ou pelo menos maior) elo de ligação com o tal mundo real fora dos palcos e com quem havia construído uma vida cúmplice e a dois. Perda essa que, no entanto, iria (in)directamente proporcionar-lhe um inesperado reencontro com o seu passado (julgava) já enterrado e distante.
As más notícias viajam rapidamente (diz-se), e tudo chega aos ouvidos de alguém por muito distantes que se encontrem. Nesta base, é a irmã de "Ricardo" que se aproxima e reata um laço primário há muito desfeito. Sem qualquer contacto com o irmão ou para com a sua vida da qual nada sabia, "Maria" é a nova porta aberta que irá restabelecer o seu contacto com o mundo que o havia desencantado e que, também ele, havia pretendido abandonar. No seio da perda, da incerteza, das incógnitas para com um futuro agora desconhecido e onde nada é tomado como garantido como até então que "Ricardo" se vê, uma vez mais, junto daqueles que melhor o haviam conhecido - os mais de quinze anos de distâncias não confessadas deixam marcas que a todos transformam em novas pessoas - e é o encontro com um sobrinho desconhecido e que, também ele, observa o mundo de outra forma mais pueril, inocente e potencialmente com mais objectivos, sonhos e realidades concretizáveis que, lentamente, devolve a "Ricardo" uma inesperada força e esperança de viver que se havia perdido quando (lhe) desaparece o seu único reduto de felicidade real.
Em Amarante - o tal mundo já conhecido e rejeitado pela personagem de Filipe Duarte -, o encontro entre tio e sobrinho começa por ser de espanto de um e aceitação imediata pelo outro. Enquanto "Ricardo" se revela receptivo mas com os seus próprios receios pela abertura a uma nova relação (agora sanguínea), "Vasco" é o protótipo de jovem adolescente repleto de sonhos, ambições, desejos e sentimentos naturais e puros que ora parecem de difícil alcance ou (para a sua mãe) se impossível concretização quando dizem respeito a uma ligação sentimental com a sua melhor amiga e ex-noiva de "Ricardo". "Vasco" vive o mundo com todas as suas potencialidades e os limites são proporcionalmente inversos aos seus desejos... se os primeiros parecem não existir, os últimos fazem-no equacionar numa família, em amor, em trabalhar no teatro e até mesmo numa vida independente que até então lhe fora impossível pela sua próxima relação com uma mãe protectora e que tem nele o único elo de ligação emocional e afectiva possível. Mãe e filho vivem na imediata dependência um do outro e "Maria" reconhece que tem de deixar o filho voar... mesmo que isso a consuma lenta e ferozmente com o passar dos dias.
A margem (outra) de A Outra Margem é, desta forma, explícita pelo posicionamento no mundo de todas estas personagens ora desencantadas com as suas limitações, emocionalmente desencantadas com as suas conquistas ou distantes de uma concretização pessoal nos mais diversos níveis pelas concessões que tiveram de fazer para um mundo que não os compreendeu ou quis acompanhar... o lado sentimental e afectivo de "Maria"... a inadaptação sentimental de "Luísa" (Sara Graça), o sentimento de perda de um filho manifestado por "José" (Horácio Manuel) que desesperadamente quer reatar com "Ricardo" sem saber ou conseguir perceber como o fazer e finalmente deste último que sente ter perdido a oportunidade de constituir família com a sua de sangue... e dar-lhe continuidade afectiva com um namorado agora desaparecido. É, no entanto, em "Vasco" que todos estes sonhos e desejos parecem manter-se vivos... sonha ter uma profissão... uma família... amor... ser pai... nem que seja no teatro (a sua paixão) onde tudo parece poder viver alternadamente mas de forma real, satisfazendo os tais sonhos "impossíveis" de um mundo concentrado não em si mas sim na sua diferença... naquela que os olhos dos outros insistem em ver mas não em compreender o que está para lá dos mesmos. Assim, esta outra margem é aquela que separa o desencanto dos ditos "normais" para o outro lado onde residem os "sonhadores"... mesmo aqueles que são, também eles, considerados diferentes por uma qualquer ordem normativa imposta por "alguém" que um dia delimitou espaços, estabeleceu fronteiras e criou a marginalização do "outro" simplesmente porque este não se enquadrava dentro de um qualquer padrão de normalidade por vezes tantas vezes difícil de alcançar. "Vasco" sonha... vive... e deseja... mantendo-se vivo pela hipótese de que tudo é possível esquecendo, ou melhor ignorando, que os impossíveis existem... mais do que qualquer um de nós está disposto a admitir.
É nessas referidas margens - a "minha" em oposição à dos "outros" - em que todos se encontram, que finalmente se reconhecem essas "diferenças" mas onde também se compreende a sua relativização... quão diferentes seremos todos nós se, no final, apenas conseguimos identificar todo um conjunto de aspirações comuns... uma casa, um trabalho, um amor... uma vida! Estaremos "nós", os ditos "normais" concentrados naquilo que realmente desejamos ou, por sua vez, atentos ao que nos separa daqueles que realmente ainda ousam lutar pelo que sonham e, dessa forma, estereotipados como os "diferentes"?! De regresso às primeiras palavras deste comentário, o mundo poderá não estar assim tão diferente de 2007... basta para tal enquadrarmos todo o contexto político e social da época para compreendermos que com a devida escalada dos conflitos e dos extremismos, estes nunca desapareceram na realidade. No entanto, e tal como o realizador Luís Filipe Rocha referira na palestra que sucedeu à exibição da sua obra, ainda há seres humanos que se enquadrem nessa designação, trabalhando diariamente para a diferença individualizada de cada um, elevando espíritos, conferindo oportunidades ou proporcionando a concretização de pequenos mas pontuais transformações que geram o enriquecimento pessoal e a elevação de uma melhoria do estado individual de cada um... A possibilidade está lá... basta que para a sua concretização se concentre - o indivíduo - não no todo... mas sim nesse pequeno e "diferente" ser individualizado.
Correndo o risco da criação de mais um "lugar comum", é inegável dizer que Filipe Duarte é um dos actores maiores da sua geração. Criador de magníficas interpretações que cativam pela sua expressão e ponderação de todos os pequenos momentos que transmitem todo um mundo de emoções, sentimentos e pensamentos, Duarte prende o espectador à sua interpretação desde os primeiros instantes - todos os troféus não farão o filme maior do que é mas, no entanto, são justificados e pecam por não serem mais -, e os momentos que divide com o jovem Tomás Almeida geram toda uma química instantânea que o espectador não ignora. Assim, e num registo assumidamente dramático, são os gestos, os olhares e, como tal, todas as cumplicidades criadas que elevam A Outra Margem a um outro patamar. Aos dois não pode ser ignorado o contributo da excelência interpretativa de Maria d'Aires, e da sua "Maria", mãe galinha mas mulher adiada pela incapacidade (ou falta de vontade), em completar-se enquanto mulher com sentimentos e desejos próprios... a sua vida, ainda que vivida repleta de amor maternal, sente-se a determinado momento como alguém cerrado para o mundo que está para lá das portas da sua casa. Intenso o diálogo que tem com o "Ricardo" de Filipe Duarte onde expõe os seus desejos para o futuro de um filho que quer ver "crescer e ganhar asas", d'Aires tem um dos mais fortes e intensos desempenhos do cinema português recente.
Simples mas criativo, humano e existencialista, colectivo pelo seu potencial mas ao mesmo tempo individualizado pela forma como demonstra que apenas uma pessoa pode fazer a diferença, A Outra Margem nunca se transforma num filme militante por forçosamente querer difundir um qualquer estilo de vida ou uma valorização da diferença per si... A Outra Margem é sim um filme que revela a possibilidade e a normalização dessa diferença... daqueles que a fazem e dos demais receptivos a abraçá-la... esses, tantas vezes ignorados mas capazes de transformar o mundo, passo a passo, rua a rua, bairro a bairro... num espaço um pouco melhor longe do cinismo e da amargura que tantas vezes caracterizam os comportamentos humanos que se recusam a criar normas e impôr regras sobre "o que é" e "o que deveria ser".
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