Carga de Bruno Gascon (Portugal) é a primeira longa-metragem do realizador das curtas-metragens Boy (2014) e Vazio (2015) cujo argumento - também da sua autoria - remete o espectador para uma história tragicamente real nos nossos dias... o tráfico e exploração de seres humanos.
Viktoryia (Michalina Olszanska) chega a Portugal no contentor de um camião conduzido por António (Vítor Norte). Esta não é uma viagem qualquer... O primeiro sinal da sua vida chega quando Viktor (Dmitry Bogomolov) revela que todos estes imigrantes são pequenas peças de uma rede de tráfico e exploração sexual que irá, de forma inimaginável, alterar as suas vidas. Viktoryia terá de conseguir sobreviver-lhe.
Foi a inteligente mediatização desta longa-metragem, a sua campanha de divulgação e a anterior obra da dupla realizador Bruno Gascon e produtora Joana Domingues que, aliada a um magnífico elenco onde figuram para além dos já referidos actores outros como Rita Blanco, Ana Cristina Oliveira, Miguel Borges ou Duarte Grilo que fizeram de Carga uma das mais esperadas longas-metragens deste quase final de ano cinematográfico.
O argumento, também assinado pelo realizador, transporta o espectador para um muito silenciado drama moderno fruto de uma abertura fronteiriça que é agora, o inexistente limite para a propagação livre do tráfico de seres humanos às mãos de uma máfia sedenta do mais rápido lucro económico que a mesma lhes proporciona. Neste contexto, assistimos então a uma infindável rede de "profissionais" que exploram não só a miséria alheia com vista ao lucro próprio mas sobretudo os limites invisíveis de uma lei que, na realidade, opta por ignorar aquilo que não "vê". É então que começamos por conhecer "Viktoryia" (Michalina Olszanska), uma jovem mulher que, descendente desse distante leste Europeu, encara no Ocidente a saída para a sua recuperação económica podendo, dessa forma, sustentar toda uma família que (desconhece mas subentende o espectador) espera por dias melhores. Mas, do distante antigo bloco soviético a esta Europa Comunitária ainda encarada como um qualquer eldorado onde as hipóteses e os sonhos são ainda uma possibilidade, existe toda uma distância não só geográfica como principalmente oportunista e cínica que assume a miséria alheia como a fonte de resolução dos seus problemas. Por um lado encontramos todo um conjunto de máfias que assumem as dificuldades dos seus compatriotas como uma hipótese de alcançar o sucesso (financeiro), estabelecendo-se como importantes "homens de negócios" neste Ocidente que voluntariamente os ignora... Por outro, encontramos todo um conjunto de intermediários que encaram nesta "actividade económica" a (sua) mais recente forma de sustento possibilitando um melhor nível de vida que a crise recentemente sentida veio abalar. Pelo meio são estabelecidas todo um conjunto de redes e artimanhas que não só perpetuam esta "negociata" como principalmente estabelecem relações de dependência com as referidas máfias, impossibilitando o mais honesto dos "homens de trabalho" (entretanto já não tão honestos) de saírem destas redes... mesmo que o tentassem.
Estabelecida que está a dinâmica de Carga - e dos seus principais intervenientes - reside então o drama das vítimas, aquele tentado pelos agressores que a meio gás reflectem sobre o dilema moral que violentamente sobre eles se abate, a conivência dos "ricos empresários" deste Ocidente que encontram nestes "encontros" pagos a forma de expiarem os seus desejos mais selváticos e imorais ao mesmo tempo que outros, nos seus limites, vivem na ignorância - como a personagem interpretada por Blanco - e, de certa forma, também as famílias destas jovens mulheres que se mantêm num esquecimento perpétuo desconhecedores dos destinos das suas filhas.
No meio de alguns lugares comuns sobre a acção desta máfia de leste que em vez de explorar economicamente todos os migrantes que fazem chegar à Europa Ocidental optam por eliminar todos aqueles que são do sexo masculino ou mesmo o aspecto terceiro mundista com que chegam a este canto do continente já não tão encantado, Carga deposita mais o seu foco na perspectiva de todos os referidos intermediários do que propriamente na vítima protagonista aqui a cargo de uma inspirada e combativa Olszanska que não se resigna à sua condição de vítima optando por uma luta da qual, em última instância, poderá sair perdedora. Assim, é ao longo da dinâmica estabelecida logo no inicio desta longa-metragem, que o espectador observa em primeiro lugar a perspectiva de "António" (Vítor Norte), o aparentemente pacato homem de família, distante da mulher que ama e um daqueles homens de respeito que se transformou num inesperado pai da própria neta em virtude da emigração da filha vítima, também ela, da crise que o país conheceu. Observamos ainda como a sua própria mulher (Blanco), se transforma no rosto de uma humanidade ainda querida dos Portugueses que insistem em auxiliar - sem questionar - o primeiro desamparado que lhes bate à porta - a seu tempo o momento mais esperado desta longa-metragem que resulta naquela ode à ironia - mas, sobretudo, ao desencanto tardio dos intermediários a soldo "empregados" por essa máfia como a "Sveta" de Ana Cristina Oliveira - gélido e convincente o seu desdém para com "Anna" de Sara Sampaio - onde se compreende que também ela fora em tempos uma vítima daquilo ao qual hoje dá continuidade ou o "Mário" de Miguel Borges que depois de ter entregue centenas ou milhares de mulheres a um cruel destino se deixa encantar pela beleza de "Viktoryia" compreendendo que tem de a salvar... custe o que custar.
Mas, é neste deambular de consciências mais ou menos pesadas em choque com um humanismo e vontade de fugir e sobreviver apresentados pela vítima que surge também o tal esperado rosto do mal encarnado por um sinistro "Viktor" (belíssima composição de Dmitry Bogomolov). De sorriso fácil mas nunca quente ou tão pouco convidativo, Bogomolov encanta pela forma como seduz forçadamente pelo poder das suas palavras, pela certeza das suas convicções e mais ainda pela garantia que o seu olhar confere de que nada do que de ma se espera é tão mau quanto aquilo que o próprio pode provocar. O seu "Viktor" garante... podias - nunca se saberá - nunca ter entrado no "negócio"... mas jamais conseguirás sair dele sem que sejas real e definitivamente eliminado... Seguramente uma das mais fortes interpretações às quais deu corpo e alma, Bogomolov surge aqui com um dos mais intensos desempenhos desta história capaz de deixar o espectador na dúvida sobre se não irá encontrar uma qualquer explosão da sua personagem... e encontra - spoilers aside - mas, ainda assim, conseguir que o espectador não se distancie da mesma.
A temática do tráfico de seres humanos não é novidade no cinema português... já o tivemos com Transe (2006), de Teresa Villaverde, Yulya (2015), de André Marques ou na curta-metragem deste ano Yellow Country, de Dinis M. Costa explorando todas as vertentes do crime organizado... das pressões e ameaças às chantagens e à política do medo sem esquecer os efeitos colaterais que todas as inesperadas vítimas e intervenientes exibem aquilo que todas estas obras tentam filmar (e consciencializar).. No entanto, Carga surge possivelmente num momento em que o público se encontra mais receptivo - e eventualmente mais consciencializado - de que este "negócio" do tráfico de seres humanos existe e talvez não tão longe das suas fronteiras e das suas portas... não é apenas uma realidade de um qualquer destino que dificilmente identifica e que desconhece pela sua distância. Esta exploração económica e sexual existe e, tal como o título da longa-metragem indica, para muitos que a praticam mais não é do que uma forma de "carga" que se transporta de destino a destino e que faculta mais algum dinheiro ao final do mês... indiferenciada que está a "mercadoria", porque não começar finalmente a perceber que também dentro das nossas fronteiras - e a tal ideia de que pode acontecer mesmo na "casa do lado" - existe a ocorrência sistemática de um crime que possivelmente não se quer encarar e admitir... Assim, e talvez de forma diferente das obras anteriormente mencionadas, a longa-metragem de Bruno Gascon consegue juntar o útil ao agradável - estranha mas indicada escolha de palavras - conseguindo filmar um drama real de forma séria mas comercial capaz de chegar a um público maior e mais receptivo e cujo próprio leque de actores, também pela sua mediatização, poderá conseguir "recrutar" público às salas e criar a tal consciência de que o que vemos não é apenas um filme unindo de forma inteligente as várias "funções" de um filme... entreter e ensinar ou dar a conhecer.
Consciente de uma importante mensagem a transmitir, fruto de um argumento bem estruturado, mesmo tipificando por vezes em demasia o "protótipo" do emigrante de leste e do português bom samaritano, Carga tem ainda uma imponente música original - parabéns a Filipe Goulart e Milton Núñez - que, no entanto, nem sempre funciona para a melhor dramatização de todos os momentos onde, por vezes se pressupõe que vai existir um qualquer clímax quando, na realidade, nem sempre o mesmo se encontra "no momento", assim como uma sumptuosa direcção de fotografia de JP Caldeano que capta, com a mesma segurança, tanto as cores naturais desse país real rude mas quase sempre sobre-humano, como também essa assumida desumanização dos calabouços onde todas as vítimas (sobre)vivem à espera de uma libertação que tarda ou nunca chegará... a escuridão envolve-(n)os e aquelas prisões de porta destrancada tornam-se sombrias e verdadeiros labirintos assumindo que qualquer um, quando preso nestas malhas do crime, é seu refém.
Inteligente, pertinente, actual e consistente do início ao final, Bruno Gascon triunfa com esta Carga... uma primeira longa-metragem onde se expõem não só vítimas e mandantes do crime como principalmente todos aqueles que pelos mais variados motivos subsistem com a perpetuação do mesmo. Sobre estes últimos permanece o dito popular... Em terra de cego, quem tem olho é rei... pelo menos... até um dia!
O argumento, também assinado pelo realizador, transporta o espectador para um muito silenciado drama moderno fruto de uma abertura fronteiriça que é agora, o inexistente limite para a propagação livre do tráfico de seres humanos às mãos de uma máfia sedenta do mais rápido lucro económico que a mesma lhes proporciona. Neste contexto, assistimos então a uma infindável rede de "profissionais" que exploram não só a miséria alheia com vista ao lucro próprio mas sobretudo os limites invisíveis de uma lei que, na realidade, opta por ignorar aquilo que não "vê". É então que começamos por conhecer "Viktoryia" (Michalina Olszanska), uma jovem mulher que, descendente desse distante leste Europeu, encara no Ocidente a saída para a sua recuperação económica podendo, dessa forma, sustentar toda uma família que (desconhece mas subentende o espectador) espera por dias melhores. Mas, do distante antigo bloco soviético a esta Europa Comunitária ainda encarada como um qualquer eldorado onde as hipóteses e os sonhos são ainda uma possibilidade, existe toda uma distância não só geográfica como principalmente oportunista e cínica que assume a miséria alheia como a fonte de resolução dos seus problemas. Por um lado encontramos todo um conjunto de máfias que assumem as dificuldades dos seus compatriotas como uma hipótese de alcançar o sucesso (financeiro), estabelecendo-se como importantes "homens de negócios" neste Ocidente que voluntariamente os ignora... Por outro, encontramos todo um conjunto de intermediários que encaram nesta "actividade económica" a (sua) mais recente forma de sustento possibilitando um melhor nível de vida que a crise recentemente sentida veio abalar. Pelo meio são estabelecidas todo um conjunto de redes e artimanhas que não só perpetuam esta "negociata" como principalmente estabelecem relações de dependência com as referidas máfias, impossibilitando o mais honesto dos "homens de trabalho" (entretanto já não tão honestos) de saírem destas redes... mesmo que o tentassem.
Estabelecida que está a dinâmica de Carga - e dos seus principais intervenientes - reside então o drama das vítimas, aquele tentado pelos agressores que a meio gás reflectem sobre o dilema moral que violentamente sobre eles se abate, a conivência dos "ricos empresários" deste Ocidente que encontram nestes "encontros" pagos a forma de expiarem os seus desejos mais selváticos e imorais ao mesmo tempo que outros, nos seus limites, vivem na ignorância - como a personagem interpretada por Blanco - e, de certa forma, também as famílias destas jovens mulheres que se mantêm num esquecimento perpétuo desconhecedores dos destinos das suas filhas.
No meio de alguns lugares comuns sobre a acção desta máfia de leste que em vez de explorar economicamente todos os migrantes que fazem chegar à Europa Ocidental optam por eliminar todos aqueles que são do sexo masculino ou mesmo o aspecto terceiro mundista com que chegam a este canto do continente já não tão encantado, Carga deposita mais o seu foco na perspectiva de todos os referidos intermediários do que propriamente na vítima protagonista aqui a cargo de uma inspirada e combativa Olszanska que não se resigna à sua condição de vítima optando por uma luta da qual, em última instância, poderá sair perdedora. Assim, é ao longo da dinâmica estabelecida logo no inicio desta longa-metragem, que o espectador observa em primeiro lugar a perspectiva de "António" (Vítor Norte), o aparentemente pacato homem de família, distante da mulher que ama e um daqueles homens de respeito que se transformou num inesperado pai da própria neta em virtude da emigração da filha vítima, também ela, da crise que o país conheceu. Observamos ainda como a sua própria mulher (Blanco), se transforma no rosto de uma humanidade ainda querida dos Portugueses que insistem em auxiliar - sem questionar - o primeiro desamparado que lhes bate à porta - a seu tempo o momento mais esperado desta longa-metragem que resulta naquela ode à ironia - mas, sobretudo, ao desencanto tardio dos intermediários a soldo "empregados" por essa máfia como a "Sveta" de Ana Cristina Oliveira - gélido e convincente o seu desdém para com "Anna" de Sara Sampaio - onde se compreende que também ela fora em tempos uma vítima daquilo ao qual hoje dá continuidade ou o "Mário" de Miguel Borges que depois de ter entregue centenas ou milhares de mulheres a um cruel destino se deixa encantar pela beleza de "Viktoryia" compreendendo que tem de a salvar... custe o que custar.
Mas, é neste deambular de consciências mais ou menos pesadas em choque com um humanismo e vontade de fugir e sobreviver apresentados pela vítima que surge também o tal esperado rosto do mal encarnado por um sinistro "Viktor" (belíssima composição de Dmitry Bogomolov). De sorriso fácil mas nunca quente ou tão pouco convidativo, Bogomolov encanta pela forma como seduz forçadamente pelo poder das suas palavras, pela certeza das suas convicções e mais ainda pela garantia que o seu olhar confere de que nada do que de ma se espera é tão mau quanto aquilo que o próprio pode provocar. O seu "Viktor" garante... podias - nunca se saberá - nunca ter entrado no "negócio"... mas jamais conseguirás sair dele sem que sejas real e definitivamente eliminado... Seguramente uma das mais fortes interpretações às quais deu corpo e alma, Bogomolov surge aqui com um dos mais intensos desempenhos desta história capaz de deixar o espectador na dúvida sobre se não irá encontrar uma qualquer explosão da sua personagem... e encontra - spoilers aside - mas, ainda assim, conseguir que o espectador não se distancie da mesma.
A temática do tráfico de seres humanos não é novidade no cinema português... já o tivemos com Transe (2006), de Teresa Villaverde, Yulya (2015), de André Marques ou na curta-metragem deste ano Yellow Country, de Dinis M. Costa explorando todas as vertentes do crime organizado... das pressões e ameaças às chantagens e à política do medo sem esquecer os efeitos colaterais que todas as inesperadas vítimas e intervenientes exibem aquilo que todas estas obras tentam filmar (e consciencializar).. No entanto, Carga surge possivelmente num momento em que o público se encontra mais receptivo - e eventualmente mais consciencializado - de que este "negócio" do tráfico de seres humanos existe e talvez não tão longe das suas fronteiras e das suas portas... não é apenas uma realidade de um qualquer destino que dificilmente identifica e que desconhece pela sua distância. Esta exploração económica e sexual existe e, tal como o título da longa-metragem indica, para muitos que a praticam mais não é do que uma forma de "carga" que se transporta de destino a destino e que faculta mais algum dinheiro ao final do mês... indiferenciada que está a "mercadoria", porque não começar finalmente a perceber que também dentro das nossas fronteiras - e a tal ideia de que pode acontecer mesmo na "casa do lado" - existe a ocorrência sistemática de um crime que possivelmente não se quer encarar e admitir... Assim, e talvez de forma diferente das obras anteriormente mencionadas, a longa-metragem de Bruno Gascon consegue juntar o útil ao agradável - estranha mas indicada escolha de palavras - conseguindo filmar um drama real de forma séria mas comercial capaz de chegar a um público maior e mais receptivo e cujo próprio leque de actores, também pela sua mediatização, poderá conseguir "recrutar" público às salas e criar a tal consciência de que o que vemos não é apenas um filme unindo de forma inteligente as várias "funções" de um filme... entreter e ensinar ou dar a conhecer.
Consciente de uma importante mensagem a transmitir, fruto de um argumento bem estruturado, mesmo tipificando por vezes em demasia o "protótipo" do emigrante de leste e do português bom samaritano, Carga tem ainda uma imponente música original - parabéns a Filipe Goulart e Milton Núñez - que, no entanto, nem sempre funciona para a melhor dramatização de todos os momentos onde, por vezes se pressupõe que vai existir um qualquer clímax quando, na realidade, nem sempre o mesmo se encontra "no momento", assim como uma sumptuosa direcção de fotografia de JP Caldeano que capta, com a mesma segurança, tanto as cores naturais desse país real rude mas quase sempre sobre-humano, como também essa assumida desumanização dos calabouços onde todas as vítimas (sobre)vivem à espera de uma libertação que tarda ou nunca chegará... a escuridão envolve-(n)os e aquelas prisões de porta destrancada tornam-se sombrias e verdadeiros labirintos assumindo que qualquer um, quando preso nestas malhas do crime, é seu refém.
Inteligente, pertinente, actual e consistente do início ao final, Bruno Gascon triunfa com esta Carga... uma primeira longa-metragem onde se expõem não só vítimas e mandantes do crime como principalmente todos aqueles que pelos mais variados motivos subsistem com a perpetuação do mesmo. Sobre estes últimos permanece o dito popular... Em terra de cego, quem tem olho é rei... pelo menos... até um dia!
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