quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Lovers on Borders (2018)

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Lovers on Borders de Atsushi Funahashi (Portugal/Japão) é uma das longas-metragens oficiais em competição no Caminhos do Cinema Português a decorrer em Coimbra no Teatro Académico Gil Vicente.
Lisboa 1757. Dois anos após o terramoto que devastou a cidade, Gaspar de Carvalho (António Durães) regressa da Ásia para recuperar a casa de família. Consigo trás os escravos japoneses e africanos que havia trocado por pólvora. Na sua propriedade, Mariana (Ana Moreira) é uma nova empregada por quem se apaixona. Mas, no coração de Mariana palpita um sentimento por Shiro (Yûta Nakano), um desses escravos.
Em 2021, dez anos depois do acidente de Fukushima a história repete-se mas, desta vez, Mariana vive uma arrebatadora história de amor que apenas a tragédia da crise poderá impedir de se concretizar.
Portugal e Japão com uma história que os une ao longo dos séculos é o ponto de partida para um argumento escrito pelo próprio realizador e dividido em dois segmentos, que remete o espectador primeiro para um Portugal destruído pela crise - geológica, cultural, económica e social - como consequência do maior evento natural da sua História e, de seguida, para uma semelhança histórica que faz também do Japão um país numa semelhante crise económica incapaz de recuperar onde uma improvável história de amor tenta resistir às agruras de um fim (ou início) anunciado. Como todas as tragédias, também estas são o motor não só para a recuperação e transformação de um todo como principalmente das pequenas experiências pessoais que surgem e brotam no meio de toda uma tragédia.
Se no primeiro momento é a relação de um amor improvável que surge entre uma humilde criada portuguesa (Moreira) e um escravo japonês (Nakano), a mesma surge num Japão do século XXI que se tenta afirmar e recuperar de um desastre sismológico, onde as transformações económicas do mesmo decorrentes tentam adiar, lançando na incerteza vidas que com sonhos e esperanças tentam a diferença e um qualquer sucesso enraízado nos costumes e nas tradições que caracterizam países distantes geograficamente mas próximas pela História e pelas circunstâncias que a desgraça os marcou.
Mas, se o amor é a marca que tenta afirmar-se nos dois referidos momentos, é também a violência do poder económico - física e social - sobre os mais desprotegidos que ganha contornos protagonistas ao lançar não só as referidas personagens como as suas histórias num ambíguo fim que os impede de uma progressão emocional firme entre si e para com o meio em que se inserem, transformando-os em pequenos redutos de incerteza principalmente a propósito dos seus próprios sentimentos (ou da construção dos mesmos) e finalmente na sua proximidade que surge como resultado de relações adversas que primeiro se instalam pelo ódio e, finalmente, pela compreensão de que a sua própria sobrevivência surge pelo afecto criado e originário dessa manifestação de repulsa mútua. Na sua essência, a grande questão que é aqui levantada prende-se com a compreensão de que no fim, as relações que surgem são, na sua maioria, resultado de ódios, solidões e perdas que se manifestaram em cada uma das personagens. Nenhuma delas, independentemente de como se encontram no momento "presente", foi fruto de um sentimento espontâneo e natural mas sim de um conjunto de acções negativas que, no final, despoletou um entendimento de que a mesma seria a última oportunidade para todos eles.
E, como todas as histórias de amor, também em Lovers on Borders surge a morte como uma das suas protagonistas. Primeiro decorrente dos eventos naturais que assolaram os dois países e que os marcaram de forma determinante transformando-os não só em termos populacionais como mantendo reféns de políticas económicas centradas na rigidez e na pressão entre entidades patronais e força de trabalho... se no caso português este deu origem à presença de escravatura - ilegal - no país/metrópole, no exemplo japonês originou toda uma política de contenção de custos como forma de fazer sobreviver as empresas imersas numa crise económica da qual o país parece não conseguir sair. Morte essa que se manifesta depois nos sonhos, esperanças e expectativas de progressão pessoal e profissional daqueles que tentam sobreviver... num contexto a um nível pessoal onde um amor considerado proibido dá os primeiros passos entre os dois protagonistas... no último na forma como o sonho é eliminado pela força dessa dita crise e da contenção económica que todos impossibilita de olhar para o "dia de amanhã" com a esperança que lhe seria natural.
Mas não são só as crises que Lovers on Borders aborda. Pelo menos não só aquelas de conteúdo económico e podemos observá-lo nos dois momentos em que se divide esta história quando num Portugal do século XVIII existe a consciencialização de raça e classe deixando para as camadas mais desprotegidas e desfavorecidas não só aqueles que chegam dos vários pontos do Império, de um estrangeiro desconhecido - o Japão - mas também de dentro do país de onde surgem as vítimas do pós-terramoto e, num Japão do século XXI onde os ditos "mestiços" fruto das relações nipo-brasileiras são aqueles que mais facilmente encontram não só a xenofobia como a ostracização de todas as relações, principalmente as laborais, mas também sociais e até afectivas mantendo-se no limbo da dita "vida normal". No seio de todo um universo onde reina a crise, a questão que permanece é sobre os seus limites - se é que alguns - e principalmente sobre como esta afecta aqueles que dela sobrevivem... em última instância.
Num ambiente centrado nas relações amorosas, nos eventos naturais e na forma como os indivíduos se aproximam independentemente das suas origens ou classes, Lovers on Borders acaba por fazer justiça a um título que remete o espectador para a consciencialização de que o amor (este pelo menos) se encontra num inesperado limbo que parece nunca querer ser concretizado mantendo os seus protagonistas num compasso de espera, compreendendo a sua situação mas nunca se querendo comprometer com a inevitabilidade de um distanciamento... ali mesmo ao lado.
Original pela forma como se expõe uma mesma história em contextos semelhantes mas distanciados pelas culturas e pelos séculos, Lovers on Borders destaca-se pela interessante execução principalmente da realidade histórica portuguesa ao recriar todo um elaborado cenário de época - arte, guarda-roupa e caracterização no seu melhor -, e que poderia por si só ter feito surgir um brilhante filme de época com a particularidade de ser escrito e filmado por alguém "distante" da realidade e do contexto histórico português de então, mas que transforma todo o ambiente e atmosfera da sua história num peculiar e cativante momento de cinema do qual o espectador fica com a vontade de ver - e ter - mais. Curioso ainda pela forma como faz, séculos depois, chegar a alma portuguesa ao outro lado do mundo, num já não tão vibrante Japão afectado por uma crise de uma década mas, ainda assim, manter vivo um espírito saudosista e nostálgico muito característico da realidade e do universo português fazendo destacar a dupla de actores japoneses aqui presentes, um vibrante António Durães como o mal amado nobre português e os dois distintos, embora semelhantes, registos de Ana Moreira sempre capaz de afirmar como o centro de uma história que é, no fundo, intemporal... tal como o amor.
Assim, Lovers on Borders é capaz de se afirmar além fronteiras... longe de quaisquer barreiras ou linhas geográficas imaginadas... tal como o amor no qual se baseia todo o relato de um conto histórico... e sobre a História.
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7 / 10
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