quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Soldado Milhões (2018)

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Soldado Milhões de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa (Portugal) presente na competição oficial da XXIVª edição dos Caminhos do Cinema Português a decorrer no Teatro Académico Gil Vicente, em Coimbra chega como a obra que marca o centenário do final da Grande Guerra Mundial.
Aníbal Augusto Milhais é um dos muitos soldados portugueses que, em 1918, parte para a Flandres onde irá combater em La Lys. Em 1943, em Portugal prestes a ser alvo de mais uma homenagem, Milhais - agora Milhões - recorda os idos tempos quando, em 1918, se transformou num herói de guerra português.
Mário Botequilha e Jorge Paixão da Costa assinam o argumento desta longa-metragem num momento que, para lá de pertinente dado o centenário do final deste conflito revela, tal como então, uma época que se adivinhava de extremismos, nacionalismos e fundamentalismos numa Europa que ciclicamente se vê em convulsão. Mas, para lá do contexto histórico que estranha e ciclicamente se repete, é esta longa-metragem da dupla de realizadores que se tende a analisar. Num estilo muito próprio, e que nem é tanto sobre o conflito em si mas sobre a forma como um homem já distante do mesmo tende a sobreviver numa época em que o seu isolamento e prisão a uma imagem criada noutros tempos - e noutros contextos - o transformam psicologicamente num indivíduo diferente daquele que provavelmente imaginou ser.
Dividido em dois segmentos muito específicos - 1918 e 1943 onde, curiosamente, ambos se situam em períodos de dois conflitos mundiais -, Soldado Milhões apresenta primeiro um "Milhões" (Miguel Borges) perdido no seu tempo. Um homem que serve de coqueluche de um regime que pontualmente o apresenta como a imagem de um país heróico e oriundo de umas quaisquer cinzas onde, renascido, é utilizado para uma propaganda típica do sistema de então. Por outro, e como paralelo, encontramos "Milhais" - antes de ser "Milhões" - (João Arrais) como o jovem transformado em adulto graças ao conflito em que participa e ele, tal como todos os demais que o acompanham, homens antes do seu próprio tempo, são agora meras barreiras no avançar de uma ofensiva alemã que não parece poder ser travada. É então que o jovem (agora homem) por sorte ou mero acaso mais do que qualquer perícia, consegue sobreviver e eliminar um conjunto de soldados inimigos transformando-se assim no herói nacional do qual a História reza. Em 1918, tal como em 1943, este jovem/homem encontra-se condicionado a uma vida que não deseja e a um conjunto de obrigações que fazem dele mais um instrumento de uma qualquer agenda política do que propriamente o homem senhor de si próprio que vive (ou sobrevive) face às constantes provações alheias que são colocadas no seu caminho. Para lá de qualquer questão existencial levanta-se sim uma problemática moral... quem é "Milhões"? Ou, por outro lado, em quem se transformou "Milhais"?!
Se o argumento permite a interpretação desta problemática - por um lado analisar o homem e o seu tempo e, por outro, a instrumentalização de um acaso em favor de um regime -, são principalmente as interpretações desta longa-metragem que deixam uma certa curiosidade não só naquilo que foi construído como principalmente naquilo que elas poderiam ter sido com uma maior e mais dinâmica incursão nas mesmas... senão, vejamos... Encontramos um sempre intenso João Arrais enquanto protagonista mas a sua interpretação em Soldado Milhões limita-se a uma interpretação histórica da "lenda" e não tanto do jovem homem e de todos os seus dilemas e conflitos morais, afinal, lembremo-nos apenas na idade do mesmo para perceber que muitos deveriam ser os seus pensamentos, e o mesmo se adequa a todos os demais jovens actores como Isac Graça ou Tiago Teotónio Pereira cuja capacidade de dar cor às suas personagens está mais do que provada mas que aqui se limitam a ser breves secundários que, para o espectador, apenas salientam o óbvio... "Milhais" tinha os seus companheiros e amigos... algo não difícil de imaginar dadas as circunstâncias. De destacar, no entanto, encontramos Raimundo Cosme e o seu "Malha Vacas", a única potencialmente grande surpresa que esta longa-metragem entrega a nível de interpretações ao criar com o mesmo aquele que sofre o único e verdadeiro dilema moral, o que assiste não só ao desmoronar no do mundo "lá fora" como principalmente no seu pensamento que enfrenta e vê todo um conjunto de realidades que o seu Portugal nunca lhe permitira ousar pensar. Cosme faz do seu "Malha Vacas" um homem, inicialmente alegre mas no, e para o qual, tudo termina quando a realidade da guerra finalmente se faz mostrar. E tudo isto sem esquecer os demais secundários nos quais se destacam os nomes de Nuno Pardal, Ivo Canelas, Lúcia Moniz, Graciano Dias ou António Pedro Cerdeira que são quase "elementos decorativos" não deixando o argumento que as suas personagens pudessem ter um momento marcante nesta longa-metragem ou, pelo menos, que deixassem a sua real influência nos demais, na história ou mesmo no espectador.
Tecnicamente, quer a nível de som, caracterização, direcção artística e guarda-roupa, a longa-metragem da dupla Galvão Teles e Paixão da Costa é fiel não só ao género como à reconstituição de época que se espera - melhor nos anos do conflito do que propriamente na recriação do Portugal de '43 -, fazendo da mesma um interessante exemplar do género (tão raro no no nosso cinema independentemente das inúmeras histórias que poderão existir por contar) mas, ao mesmo tempo, não aquele que o espectador poderá recordar por muito tempo. Soldado Milhões tem todo o potencial e interesse histórico que uma história tão pouco contada da nossa História tem mas, ao mesmo tempo, esta longa-metragem é breve demais para que o espectador se deixe seduzir por ela por inteiro... Talvez pela dinâmica dos dois momentos temporais que poderiam até dar origem a duas longas-metragens e que, na realidade, não se enquadram na totalidade ou até pela forma como ambos são "colados" sem fazer real ligação entre ambos tenha sido o principal factor de não transformar este Soldado Milhões num verdadeiro milionário não deixando, no entanto, de ser uma obra importante no contexto de revisitação à nossa História... isso, por si só, já é alvo de um apontamento positivo para os realizadores.
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6 / 10
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