Raiva de Sérgio Tréfaut (Portugal/França/Brasil) é a mais recente longa-metragem do realizador de Viagem a Portugal (2011) e Treblinka (2016) adaptando aqui a obra Seara de Vento de Manuel da Fonseca numa viagem ao Portugal de 1950 mais concretamente a um empobrecido interior alentejano.
Palma (Hugo Bentes) assassina Elias (Diogo Dória) e Diogo Sobral (Dinis Gomes) a sangue-frio. Planícies alentejanas fora, Palma ruma à sua isolada casa onde é encurralado pela Guarda numa noite que, como tantas outras, se anuncia fria e desolada.
Nunca é demais a revisitação aos tempos anteriores à Revolução dos Cravos para conhecer um pouco dessa realidade que ainda hoje, quarenta e quatro anos depois se mantém silenciosamente incómoda e esquecida mesmo que os ecos desses tempos os tenham revelado como sombrios, miseráveis e assustadores persecutórios. Com esta perspectiva sempre em mente, a mais recente obra de Tréfaut ganha relevância na medida em que o espectador é levado a um cenário atípico desses idos tempos tão normalmente concentrados nos factos históricos que envolvem acontecimentos mais destacados e não aqueles que ocorriam com a população - dito povo - mais comum. Aqui, com base na obra de Manuel da Fonseca, o realizador dá corpo a alguns desses rostos anónimos revelando uma realidade bem distante daquela que sempre fora vendida do "celeiro de Portugal".
Neste Alentejo dos anos '50, encontramos uma população desgastada pelo tempo, pelas amarras da ditadura em plena força pós-Segunda Guerra Mundial onde a luta de classes ganha forma opondo a opulência de uma rica burguesia que dominavas as terras explorando sistematicamente aqueles que nada tinham e, estes últimos, esfomeados, pobres e sem escolaridade à espera de uma qualquer réstia de dignidade que nunca chegaria e que tenta sobreviver graças à ilegalidade e ao contrabando feito na raia.
Com estas duas dinâmicas exploradas no seu âmago, Raiva subdivide-se em dois momentos concretos cronologicamente opostos. O espectador passa os primeiros minutos desta obra a assistir ao seu final deixando para toda a demais narrativa a análise dos acontecimentos que levaram todas as suas personagens a chegarem àquele momento que havia assistido minutos antes. Sem revelar o fim - que para o espectador é o início -, aquilo que encontramos é o exacto reflexo desse Portugal economicamente pobre e isolado dando jus à teoria do "orgulhosamente sós", encerrando o país dentro de si próprio e colocando uma cerrada fronteira que tudo impedia de entrar... ou sair. Da clandestinidade ao contrabando ao qual muitos se viam forçados a recorrer tentando, dessa forma, ganhar mais algum dinheiro que os salvasse da miséria absoluta, Raiva expõe então esta família, literalmente perdida num monte alentejano, cuja casa mais não é do que um conjunto de paredes erguidas sem qualquer designação possível de "casa" tal como a conhecemos. Dos bens inexistentes a um conjunto de deambulações que permite ao espectador identificá-los como "vivos", observa este último que alguns - nomeadamente "Mariana" (Rita Cabaço) filha de "Palma" - sobrevivem não pela força de um qualquer conforto alimentar - essencial e escasso ou também ele inexistente -, mas sim pela possibilidade dessa reivindicação de direitos que lhes fora retirada ou mesmo pela liberdade de pensamento ou a dignidade humana que anseiam, mas sim (ou também) pelo conforto psicológico que a ideia de "somos todos iguais" lhes poderia conferir... Garantia essa que surgiria mais de vinte anos depois quando o país se libertou dessas amarras mas que, até à sua confirmação, muitos colheu e "tratou" para que a sua voz jamais fosse escutada.
É neste Alentejo, tido como o celeiro que alimentava o país, onde a fome mais se sentia, onde a miséria era mais crua e, como seu contraste, também a riqueza se fazia sentir deixando claro que uns podem... e outros não. Um local onde a justiça existe apenas como um rosto manchado actuando apenas para o uso próprio de um conjunto restrito de endinheirados que queria silenciar aqueles que se lhes opunham e onde todos, conscientes do seu papel social se moldam de acordo com aquilo que deles se espera. Todos os demais têm (devem) ser castrados, amedrontados, forçados a uma condição inferior ao estilo de castas, e principalmente baixar a cabeça ao "senhor" que passa frequentemente para controlar a sua "propriedade" (não necessariamente terras...). Aqui, nem o Alentejo alimenta o país como tão pouco se alimenta. Poucos ultrapassam esse limiar de pobreza absoluta mantendo-se, a maioria, no patamar de pobreza... e apenas o vislumbre do contrabando além fronteiras poderia garantir alguma breve esperança àqueles que se afogavam na miséria.
Se a obra de Tréfaut tem todo um potencial a ser explorado passando pelas amarras do regime à dinâmica da luta de classes sem esquecer a clandestinidade ou o já referido contrabando como pesos pesados das histórias da nossa História, torna-se em certa medida incompreensível como os mesmos não foram explorados num conto mais abrangente sobre as dinâmicas entre as diversas personagens para além dos lugares comuns esperados de um filme sobre o antigo regime... por exemplo, a detenção de "Júlia" (Leonor Silveira) - mulher de "Palma" - ainda que esclarecida como uma evidente represália daqueles "que podem" sobre os demais, peca pela forma como impede um maior desenvolvimento desta personagem que parece, antes da referida detenção, esquecida num monte onde nada chega... quem era esta mulher? O que a levou a uma tão apática confrontação para com o mundo - aquilo que resta dele - ou mesmo no seio da sua família onde todos parecem sofrer de um qualquer ressentimento nunca explorado, ou sequer revelado, mas que poderia ser um interessante contributo para a compreensão das suas realidades ou, pelo menos, do seu posicionamento numa história que tem tudo para fazer de Raiva uma grande longa-metragem, referência até do ano como também dos tempos Históricos vividos, e também dos presentes, justificando muito dos comportamentos daqueles que ainda resistem desse regime e conferindo uma maior compreensão da nossa História durante o século XX.
Se a direcção de fotografia de um mestre como o é Acácio de Almeida contribui, e muito, para a dinamização desta história revelando todo um ambiente negro característico do "fim" que esses tempos anunciavam - quem, afinal, teria esperança em qualquer dia desses quarenta e oito anos -, valorizando as sombras e transformando-as nos lugares escuros e pouco revelados dessa ida ditadura, e se as interpretações de um (já não) anónimo Hugo Bentes cujo "Palma" é o retrato do homem endurecido pela força bruta dos tempos e das injustiças ou de uma força da natureza como o é Isabel Ruth como a matriarca dura e aparentemente sem qualquer tipo de sentimentos mais maternais ou familiares, há algo que fica a faltar em Raiva - que faz jus ao seu título pela força contida nas expressões de todos os actores e das suas personagens - quer seja no prolongamento possível de uma história sobre a ditadura que aqui se limita a uma história de vingança construída no desespero da esperança que nunca chega... na forma como consegue ter pesos pesados e mediáticos como os de Sergi López ou Herman José com personagens meramente decorativas e cujo contributo se mantém apenas na concretização dos seus nomes nos créditos... ou mesmo no esperado desenvolvimento das personagens existentes que, para lá de "Palma", da "Amanda" de Ruth ou da "Júlia" de Silveira de quem, no entanto, tanto ficou por contar, se remetem a um desencantado "apêndice" de uma história que facilmente poderia durar o dobro do tempo... quem são eles... o que os levou ali... quem é a taberneira que organiza o contrabando - magnífica Lia Gama que tanta falta faz ao nosso cinema - ou mesmo firmar a concretização da viagem dos contrabandistas que, por si só, poderia ser um filme independente e de igual interesse... Raiva existe... mas poderia ter sido "aquele" filme sobre a raia e sobre a sua vida que não chegou a ser comprovando que o "celeiro" mais não era do que um mito publicitário desse ido regime que pretendia firmar a ideia de que o país poderia, de facto, viver nesse "orgulhosamente só"...
Importante sob uma perspectiva histórica, todas as obras de género o são na medida em que facultam ao espectador um olhar crítico e mais informado sobre os tempos, e mesmo pela adaptação de uma obra possivelmente pouco conhecida do público, Raiva aguça e cativa o interesse do espectador mas deixa, no final, a sensação de que esta poderia ser apenas a primeira parte de uma história com maior e mais elaborado desenvolvimento.
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"Palma: Nas terras mortas não há pão, os pobres nascem pobres, os ricos nascem ricos, os pobres morrem pobres, os ricos morrem ricos."
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