Do Outro Lado do Mundo de Leandro Ferreira (Portugal/Espanha) viu finalmente a sua estreia - ainda que não comercial - ao fim de treze anos depois de ter sido produzida.
A partir de um cenário que teve como base os acontecimentos que deram origem ao movimento das Mães de Bragança, esta longa-metragem leva o espectador a conhecer Lourenço (Paulo Pires), um polícia que desenvolve uma obsessão por Ana (Mercè Llorens), uma stripper de uma bar de alterne, por quem se apaixona e por quem está disposto a tudo.
Depois de anos de espera pela estreia desta longa-metragem de Leandro Ferreira, eis que finalmente a RTP presenteou o espectador com a sua estreia. Com um argumento de Luís Mário Lopes brevemente inspirado nos acontecimentos decorridos no norte de Portugal no início do século, este Do Outro Lado do Mundo tem por base uma pequena comunidade do país assolado - forte palavra para os desvios matrimoniais de alguns casais da região - por casamentos interrompidos, personagens supostamente exóticas que vêm apimentar a pacatez da cidade e despertar, ao mesmo tempo, algumas paixões ardentemente adormecidas das mais insuspeitas personagens.
É este Portugal "pequenino" perdido no interior que é aqui essencialmente explorado. Não necessariamente as dificuldades de uma vida num local isolado e distante mas sim as transformações de personalidade daqueles que nele habitam. O que acontece a estas pessoas que diariamente vêem os mesmos rostos, as mesmas histórias e os mesmos hábitos sem que, de dia para dia, nada se altere ou transforme? Mais, o que acontece quando algo ou alguém de "diferente" chega à cidade e abala uma das suas mais sagradas instituições como o é a familiar? Conseguirá a família resistir à tentação da carne? E o que acontece à ordem social quando esta sagrada instituição é abalada? O que existe para lá da família que ocupa um lugar superior na pirâmide social quando a mesma parece acabar destruída por essa agora nova tentação que surge?
Não é desconhecido para ninguém que é no mais insuspeito dos locais que se esconde a dita tentação. Tentação essa que não só coloca à prova o mais respeitado dos elementos da sociedade - como o é aqui o "Lourenço" de Paulo Pires - mas, sobretudo, tudo aquilo que o mesmo representa. Polícia, filho de polícia, com uma família tida como um pilar da comunidade e que de repente se vê ameaçado na sua estabilidade e envolvido nos meandros mais sinistros da mesma que, apesar de todos saberem que existem, ninguém lá se quer envolver. Para "Lourenço" existe a possibilidade do "sonho" como o mesmo revela quando diz que voltou a fazê-lo depois de conhecer "Ana". Mas, tal como o sonho, esta sua nova vida não passa de uma ilusão que termina quando a manhã chega. Nada aqui é, de certa forma, real. Todo o prazer, todo o sonho, todo o desejo e todas as experiências são fruto do momento. De um momento. Um momento que termina mais rápido do que havia começado e a única certeza que existe são as vidas destruídas que lentamente tentam - se é que conseguem - recuperar de uma realidade que não existira.
Ao mesmo tempo descobrimos pequenas grandes realidades escondidas por detrás destas vidas supostamente exemplares. Conhecemos um padrão de violência não apenas explícita pelas vidas marginais que o bar de alterne nos revela em personagens como, por exemplo, o "Ricky" de Ivo Canelas, mas também no passado de "Lourenço" quando é dado a perceber ao espectador que por detrás do rosto da lei espelhado em si e no seu pai - breve mas potente interpretação de José Eduardo -, também ele polícia, existe um rosto abusador que o intimidava e à sua mãe. A violência, ainda que mais latente na suposta vida de boémia que as novas realidades sociais trouxeram para a cidade, existe escondida e imperturbada nos rostos anónimos forçados a mentir sobre uma suposta harmonia social que todos sentem. Os novos rostos que habitam estes bares de alterne não trouxeram realmente a violência. Pelo contrário. A violência sempre existiu... está é, agora, a ser revelada e vivida às claras.
A dinâmica entre Pires e Llorens é sentida desde o primeiro instante recriando não uma relação afectiva mas uma dependência agonizante que, percebemos, não poderá trazer nada de bom para nenhum deles para lá da compreensão de que ambos são dois marginais numa vida que não os engana (apesar de o tentarem disfarçar). Ambos sabem estar condenados a uma realidade para a qual - ou na qual - nasceram e, independentemente de se conformarem com ela, será apenas e só aquilo que sempre irão poder ter. Tudo o demais será oportunamente arruinado por acções próprias ou suas derivações.
Secundados pelos já mencionados José Eduardo e Ivo Canelas num pouco vulgar desempenho enquanto um vilão que pouco se preocupa por onde passa ou com o que destrói, há ainda que destacar Anabela Teixeira como a mulher saturada de uma vida que não pretende ou Tomás Alves como o jovem com sonhos grandes demais para o local em que se encontra e que silenciosamente compreende nunca poder cumprir, é o argumento de Luís Mário Lopes que se destaca peo retrato desse tantas vezes chamado "Portugal profundo" que tantas vidas por cumprir esconde. Vidas essas que os anos vêem passar e que, também um segredo desarmante, aprendem não a viver mas sim a desprezar tudo o que as rodeia. Não existe respeito, ou o seu mais pequeno vislumbre, para com aqueles com quem se cruzam. Existe, talvez, uma aceitação e união para com aqueles que compreendem poder viver nas mesmas dinâmicas que o tal "eu" sofrido mas ninguém quer, na realidade, estabelecer mais elos do que aqueles que são necessários para sobreviver e encarar mais um dia. No fundo, todos acabam por ser detentores de vidas marginais que disfarçam com uma capa para que a sociedade os veja e "aceite" enquanto seus ilustres membros.
E é este mesmo argumento que tem todo um potencial por explorar que, no entanto, se deixa levar sem nunca aparentar querer consolidar-se como "a tal" história sobre vidas marginais versus vidas socialmente aceites onde ambas se disfarçam esperando que ninguém alguma vez perceba o que realmente são. Todos, sem excepção, pretendem um pouco mais para as suas vidas... uma redenção, uma saída do local em que se encontram, a concretização de um sonho, a esperança de uma vida melhor, um amor, um passado resolvido ou um futuro esperado... No entanto, nenhum parece alcançar esse momento chegando o espectador a equacionar que existe uma redenção ou aceitação de que aquilo que têm é o que foi possível alguma vez alcançar. Existe esta consciência mas, ainda assim, permanece a dúvida se foi essa vida que o argumento quis dar a estas personagens ou se foi o próprio espectador que desejou que as mesmas pudessem fazer-se cumprir sob outras realidades. É esta possibilidade de um duplo caminho que fragiliza um pouco esta longa-metragem conferindo-lhe aquela velha máxima de que poderia ter sido e que se calhar ficar por dizer...
Um bravo à RTP por finalmente ter dado luz e alguma vida a Do Outro Lado do Mundo que, no entanto, deveria ter tido a merecida estreia em sala e não limitar-se a um horário nem sempre nobre para o cinema português e um outro bravo a Paulo Pires que uma vez mais se revela como um protagonista que o nosso cinema - e público - querem ver mais.
Depois de anos de espera pela estreia desta longa-metragem de Leandro Ferreira, eis que finalmente a RTP presenteou o espectador com a sua estreia. Com um argumento de Luís Mário Lopes brevemente inspirado nos acontecimentos decorridos no norte de Portugal no início do século, este Do Outro Lado do Mundo tem por base uma pequena comunidade do país assolado - forte palavra para os desvios matrimoniais de alguns casais da região - por casamentos interrompidos, personagens supostamente exóticas que vêm apimentar a pacatez da cidade e despertar, ao mesmo tempo, algumas paixões ardentemente adormecidas das mais insuspeitas personagens.
É este Portugal "pequenino" perdido no interior que é aqui essencialmente explorado. Não necessariamente as dificuldades de uma vida num local isolado e distante mas sim as transformações de personalidade daqueles que nele habitam. O que acontece a estas pessoas que diariamente vêem os mesmos rostos, as mesmas histórias e os mesmos hábitos sem que, de dia para dia, nada se altere ou transforme? Mais, o que acontece quando algo ou alguém de "diferente" chega à cidade e abala uma das suas mais sagradas instituições como o é a familiar? Conseguirá a família resistir à tentação da carne? E o que acontece à ordem social quando esta sagrada instituição é abalada? O que existe para lá da família que ocupa um lugar superior na pirâmide social quando a mesma parece acabar destruída por essa agora nova tentação que surge?
Não é desconhecido para ninguém que é no mais insuspeito dos locais que se esconde a dita tentação. Tentação essa que não só coloca à prova o mais respeitado dos elementos da sociedade - como o é aqui o "Lourenço" de Paulo Pires - mas, sobretudo, tudo aquilo que o mesmo representa. Polícia, filho de polícia, com uma família tida como um pilar da comunidade e que de repente se vê ameaçado na sua estabilidade e envolvido nos meandros mais sinistros da mesma que, apesar de todos saberem que existem, ninguém lá se quer envolver. Para "Lourenço" existe a possibilidade do "sonho" como o mesmo revela quando diz que voltou a fazê-lo depois de conhecer "Ana". Mas, tal como o sonho, esta sua nova vida não passa de uma ilusão que termina quando a manhã chega. Nada aqui é, de certa forma, real. Todo o prazer, todo o sonho, todo o desejo e todas as experiências são fruto do momento. De um momento. Um momento que termina mais rápido do que havia começado e a única certeza que existe são as vidas destruídas que lentamente tentam - se é que conseguem - recuperar de uma realidade que não existira.
Ao mesmo tempo descobrimos pequenas grandes realidades escondidas por detrás destas vidas supostamente exemplares. Conhecemos um padrão de violência não apenas explícita pelas vidas marginais que o bar de alterne nos revela em personagens como, por exemplo, o "Ricky" de Ivo Canelas, mas também no passado de "Lourenço" quando é dado a perceber ao espectador que por detrás do rosto da lei espelhado em si e no seu pai - breve mas potente interpretação de José Eduardo -, também ele polícia, existe um rosto abusador que o intimidava e à sua mãe. A violência, ainda que mais latente na suposta vida de boémia que as novas realidades sociais trouxeram para a cidade, existe escondida e imperturbada nos rostos anónimos forçados a mentir sobre uma suposta harmonia social que todos sentem. Os novos rostos que habitam estes bares de alterne não trouxeram realmente a violência. Pelo contrário. A violência sempre existiu... está é, agora, a ser revelada e vivida às claras.
A dinâmica entre Pires e Llorens é sentida desde o primeiro instante recriando não uma relação afectiva mas uma dependência agonizante que, percebemos, não poderá trazer nada de bom para nenhum deles para lá da compreensão de que ambos são dois marginais numa vida que não os engana (apesar de o tentarem disfarçar). Ambos sabem estar condenados a uma realidade para a qual - ou na qual - nasceram e, independentemente de se conformarem com ela, será apenas e só aquilo que sempre irão poder ter. Tudo o demais será oportunamente arruinado por acções próprias ou suas derivações.
Secundados pelos já mencionados José Eduardo e Ivo Canelas num pouco vulgar desempenho enquanto um vilão que pouco se preocupa por onde passa ou com o que destrói, há ainda que destacar Anabela Teixeira como a mulher saturada de uma vida que não pretende ou Tomás Alves como o jovem com sonhos grandes demais para o local em que se encontra e que silenciosamente compreende nunca poder cumprir, é o argumento de Luís Mário Lopes que se destaca peo retrato desse tantas vezes chamado "Portugal profundo" que tantas vidas por cumprir esconde. Vidas essas que os anos vêem passar e que, também um segredo desarmante, aprendem não a viver mas sim a desprezar tudo o que as rodeia. Não existe respeito, ou o seu mais pequeno vislumbre, para com aqueles com quem se cruzam. Existe, talvez, uma aceitação e união para com aqueles que compreendem poder viver nas mesmas dinâmicas que o tal "eu" sofrido mas ninguém quer, na realidade, estabelecer mais elos do que aqueles que são necessários para sobreviver e encarar mais um dia. No fundo, todos acabam por ser detentores de vidas marginais que disfarçam com uma capa para que a sociedade os veja e "aceite" enquanto seus ilustres membros.
E é este mesmo argumento que tem todo um potencial por explorar que, no entanto, se deixa levar sem nunca aparentar querer consolidar-se como "a tal" história sobre vidas marginais versus vidas socialmente aceites onde ambas se disfarçam esperando que ninguém alguma vez perceba o que realmente são. Todos, sem excepção, pretendem um pouco mais para as suas vidas... uma redenção, uma saída do local em que se encontram, a concretização de um sonho, a esperança de uma vida melhor, um amor, um passado resolvido ou um futuro esperado... No entanto, nenhum parece alcançar esse momento chegando o espectador a equacionar que existe uma redenção ou aceitação de que aquilo que têm é o que foi possível alguma vez alcançar. Existe esta consciência mas, ainda assim, permanece a dúvida se foi essa vida que o argumento quis dar a estas personagens ou se foi o próprio espectador que desejou que as mesmas pudessem fazer-se cumprir sob outras realidades. É esta possibilidade de um duplo caminho que fragiliza um pouco esta longa-metragem conferindo-lhe aquela velha máxima de que poderia ter sido e que se calhar ficar por dizer...
Um bravo à RTP por finalmente ter dado luz e alguma vida a Do Outro Lado do Mundo que, no entanto, deveria ter tido a merecida estreia em sala e não limitar-se a um horário nem sempre nobre para o cinema português e um outro bravo a Paulo Pires que uma vez mais se revela como um protagonista que o nosso cinema - e público - querem ver mais.
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