sábado, 1 de julho de 2023

Como Matar uma Boneca (2022)

 
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Como Matar uma Boneca de Alek Lean (Brasil) é uma das curtas-metragens em competição na edição, ainda a decorrer no Cinema São Jorge, do FESTin - Festival de Cinema Itinerante de Língua Portuguesa. Aqui conhecemos "Senhora", uma fotógrafa numa mata fechada que ao encontrar uma boneca a devolve na casa mais próxima desconhecendo que a mesma ali pertence. Nessa casa, outra mulher, exibe um conjunto de estranhos comportamentos para com este brinquedo revelando, ao mesmo tempo, um conjunto de sinais de uma inesperada loucura e eventualmente traumas que o espectador desconhece.
Numa talvez ingénua primeira reflexão sobre Como Matar uma Boneca temos aqui um filme curto que nos deixa num misto se o havemos de esquecer pela incompreensão de certos elementos se parar para pensar que por detrás dos mesmos existe mais do que uma aparente história "inofensiva". Este filme fora inicialmente descrito como sendo de "poucos diálogos" e onde a "simbologia assumia a sua própria mensagem" facto que, agora depois de o ter visionado, compreendo pela pausa e separação que lhe fiz desde o primeiro instante, começo a percepcionar como a (sua) própria realidade. Dito isto... o que aqui temos?!
Esta curta-metragem onde uma fotógrafa explora uma mata ou floresta sem um fim próprio aborda, nesta aparentemente inocente viagem, temáticas que se revelam com o passar do tempo. A fotógrafa encontra a seu tempo uma boneca. Um brinquedo perdi, esquecido talvez, num improvável local e que rapidamente decide entregar numa casa perto de onde se encontra. Mas, o porquê desta "devolução" sem certeza de onde a iria deixar? O porquê de estar ali no seu caminho sem que se questionasse o tão improvável local... ou, mais ainda, o porquê de ter decidido entregar aquele brinquedo quando seria tão mais simples esquecê-lo no mesmo lugar em que o encontrou... Estas questões, mais ou menos respondidas ao longo da curta-metragem beneficiam também da compreensão do espectador que assume alguma da História do Brasil e revê nestes símbolos alguma conexão com a realidade nem sempre falada do país. Primeiro com o passado histórico do mesmo onde uma minoria privilegiada assumiu o comando do país desde a sua origem tendo a grande maioria filhos de escravos levados de África assumido uma posição forçosamente submissa que os relegou para uma "segunda categoria" sendo eles, no entanto, a maioria ainda silenciosa do país. Depois, podemos ainda encontrar nos comportamentos da segunda personagem desta curta-metragem, uma mulher solitária mas subtilmente vil e algo violenta, uma postura de dominação face a um objecto. Uma posse assumida como única e totalitária conquistando pela força aquilo que reclama como seu independentemente de muito haver sob o qual não se possa reclamar essa dita "posse". Finalmente, e talvez o elemento mais transformador - da curta-metragem e para nós enquanto público - o momento em que a boneca negra assume uma forma humana revelando que os comportamentos daquela bizarra mulher estão para lá de uma posse sob um brinquedo mas sim para com um ser humano que ela assume como um seu "súbdito" que controla, testa, humilha, violenta e maltrata pelo simples motivo de que pode... e como pode... faz!
Se todos os momentos desta curta-metragem de Alek Lean são, de certa forma, uma oscilação entre o curioso e o enigmático lançando o espectador num misto da mencionada curiosidade mas, ao mesmo tempo, de uma quase bizarria que inicialmente nos faz pensar que esta última mulher é alguém perdido nos pensamentos fruto de uma qualquer violência ou evento traumático vivido no passado, é o final que revela a veracidade dos acontecimentos que nos leva a questionar que afinal não é uma qualquer mulher marcada pelo passado mas sim alguém que perpetrou essa violência sob os demais porque por um acaso da vida se encontrou no seio dessa minoria privilegiada e detentora do poder... que tudo e todos pode corromper.
Como Matar uma Boneca, para lá de um revelador título que, compreendida a sua mensagem, anuncia ao espectador mil formas de matar a inocência e perpetrar um mal que nunca finda, assume também um conjunto de mensagens com conteúdo étnico e histórico do presente e do passado de um país ainda a tentar consolidar a sua existência com as diferentes cores e origens do seu povo fragilizando-se - esta curta-metragem - apenas num elemento. Não sendo este detrator de todo o seu conteúdo, é a excessiva teatralização dos já mencionados elementos e das interpretações das duas actrizes que se querem simbólicas e isentas que, no entanto, dispersam a atenção para a tentativa da descoberta antecipada da mensagem que apenas chega mais conclusiva já no final de toda a trama surpreendendo, em boa medida, um público que calculo esperaria outro desfecho mais "sobrenatural".
Não sendo um marco no género, Como Matar uma Boneca é importante pela forma como aborda a violência - Histórica, étnica, social, de género, do passado e do presente - e, não mostrando resultados sobre como poder efectuar uma transformação deixa em aberto a possibilidade de quem a ela assiste poder denunciar e reclamar para si a ideia de que outro rumo é possível.
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7 / 10
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