sábado, 31 de maio de 2025

Portugueses (2025)


Portugueses de Vicente Alves do Ó (Portugal) é a mais recente longa-metragem do realizador de Florbela (2012), Al Berto (2017) e Amadeo (2023) que teve a sua ante-estreia ontem nas Ruínas do Convento do Carmo, em Lisboa.
António (Diogo Branco) está em fuga. Bento (Paulo Calatré), aparentemente mais habituado aos tortuosos caminhos que mostravam um local de saída do país, ajuda-o nessa mesma fuga. Assim começa a história de Portugueses que se centra em pequenos, mas carregados de simbolismo, segmentos que mostram o Portugal do pré-25 de Abril pontuados com a revisitação de algumas das canções que marcaram esse final de regime.
A grande surpresa de Portugueses chega não necessariamente com a história em si, pois facilmente qualquer um de nós encontra esse "antigamente" ainda não tão distante presente nas histórias colectivas, pessoais, individuais ou familiares permitindo assim a qualquer um de nós encontrar pontos de referência com o mesmo, mas sim no elemento que acaba por encerrar cada um dos diferentes segmentos de forma quase catártica que nos permita (a nós espectadores) perceber ou ter uma abordagem em imagem viva sobre o que eram as diferentes realidades desse regime que felizmente terminou com a chegada do 25 de Abril de 1974: a canção. Da fuga - ou do "salto" - ilegal que tantos fizeram como forma única de fugir da Guerra Colonial ou dos seus traumas sentidos por aqueles que por lá passaram, da prisão, da perseguição ou da miséria que se fazia sentir no país há décadas, sem esquecer a perseguição política, todas as proibições incluindo a de reunião, a inexistência de Direitos, Liberdades e segurança até ao despertar de uma "nova manhã" que permitia a possibilidade de sonhar com os tais dias melhores que tantos (quase todos) nunca haviam conhecido, esta longa-metragem revisita esses diversos momentos para conferir-lhes (-nos) um momento de conhecimento para quem os assiste pela primeira vez para, de seguida, nos brindar com um final (de segmento) com a já mencionada canção que aqui se assume como o culminar desse mesmo momento seja ele o "salto" para o estrangeiro (quase sempre Espanha como ponto de passagem), a fuga das "elites" até então associadas com o regime que encontravam também no país de nuestros hermanos o porto de abrigo ainda a viver o seu próprio "antigo regime" ou ainda diversos momentos da sociedade que se deparavam com a perseguição política e repressão, com a perda de direitos parentais e ostracização familiar, com os traumas da guerra ou tão simplesmente com o despertar da nova realidade que aquela manhã de Abril a todos trouxe. A canção, quase sempre de intervenção que passa por exemplo pela "Tourada" de Fernando Tordo ou a eterna "Grândola, Vila Morena", de José Afonso, entre outras, assume em cada um dos segmentos um papel protagonista que  traça a fronteira entre o antes (a preto e branco) e o depois (a cor) de cada uma das realidades a que o espectador assiste, nenhuma delas com uma directa relação com a anterior ou seguinte existindo perfeitamente de forma independente, como o momento em que do nada se sentir se começou a compreender que tudo mudara... que tudo poderia ser vivido e experienciado como uma nova realidade que, de facto, o era. Se no início de cada canção a vida exibe-se com as cores (ou falta delas) desse regime que ao fim de quarenta e oito anos encontrara finalmente o seu término, é com a compreensão de cada uma daquelas personagens (e do espectador enquanto sua testemunha directa) que está perante um momento de transformação e mudança que o ecrã (as suas vidas) ganha(m) cor possibilitando a todo e qualquer um deles todo um conjunto de oportunidades que, até então, nem se ousavam sonhar (ou eram feitos em silêncio). Até mesmo o momento em que testemunhamos a fuga das elites para uma Espanha ainda franquista onde se reúnem todos num qualquer hotel perdido no centro do país encontramos ao som de "Conquistador" dos Da Vinci a compreensão de que essa mesma realidade de transformação é testemunhada pelos mesmos como novos tempos que, e ao invés da demais população Portuguesa, seriam da perda da sua influência e poder adquiridos até então. O país que era só "deles" passou a ser para e de todos... impensável para quem sempre deteve o poder e uma esfera de influência próxima e fechada... "já fui um Conquistador" escutamos ao som de uma voz que em descrédito assume a sua nova condição de "mais um" entre tantos que agora, tal como aqueles que havia perseguido é, também ele, um estrangeiro num país que não é o seu. A transição de preto e branco para cor é já conhecida, por exemplo, no igualmente magnífico Pleasantville (1998), de Gary Ross que, em certa medida, assume a mesma da manifestação de compreensão de uma nova realidade e de novos sentimentos que agora se podem expressar (e sentir) revelando-se como uma pequena cereja no topo do bolo. A escolha do preto e branco não poderia ter sido mais certeira. Primeiro porque dá ao espectador a imagem desse obscurantismo vivido no Portugal pré-25 de Abril onde reinava o medo, a incerteza, o analfabetismo, a insegurança, a miséria e a perseguição demonstrando portanto a falta de cor de um regime que lentamente apodrecia levando consigo aqueles que poderiam ter sido os seus melhores. Ao mesmo tempo, é essa ausência da cor que nos fornece no depois, ao surgir, a igual compreensão de que agora existe a possibilidade, a oportunidade e a vontade de construir algo novo... "era um mundo novo, um sonho de poetas"... A possibilidade do "ser". A compreensão do "existir". A manifestação do "querer".
Como já referira antes, cada um destes pequenos grandes segmentos existe por si só. Nenhum deles necessita da confirmação dos demais para se assumir como uma história dentro da História e que poderia seguramente sem qualquer apoio dos demais segmentos dar um filme cuja narrativa assumiria os seus próprios contornos. A mulher escorraçada pela família e que cria um filho sózinha recorrendo a formas nem sempre legítimas ou legais. Os jovens que deram a vida a uma guerra sem sentido (não o são todas?!) e que ou a perderam ou para sempre viveram (vivem) os seus traumas. Os despedimentos pela suspeita de que se pode pertencer a um partido que o regime não aceita. As elites que perdem o seu poder e influência encontrando-se na mesma posição que aqueles que outrora perseguiram. O despertar para uma nova realidade da qual tudo se desconhece ou até teme esperar. O perigoso saudosismo de um "antigamente" sob o qual se viveu durante décadas temendo a diferença. O despertar para as novas liberdades e direitos que ainda se temem poder sentir. O "salto" para o estrangeiro desconhecido na esperança de uma vida melhor. Todos estes, e tantos outros, poderiam ser os momentos aqui explorados à exaustão e nenhum deles necessitaria da validação do segmento anterior para se justificar assim como nenhum deles necessita validar a seguinte realidade vivendo, cada um deles, o seu próprio momento, a sua própria realidade e a sua própria verdade encontrando, em cada um de nós, o reconhecimento e a compreensão de que aqueles que por ali "passaram" ou aqueles que depois dali nasceram têm elementos em comum ou histórias semelhantes que ali encontram retratadas. Não obstante, nenhum destes segmentos está fora do contexto encontrando uma harmonia entre si que, no seu limite, encontram um desfecho com a canção que fora escolhida para lhe dar o seu "fim". Encerram-se as histórias - e aquelas realidades - com a compreensão de que o que escutamos no final de cada uma delas foi o retrato musical, não sendo o filme um musical tradicional, daquela experiência particular. Cada uma das canções encerra um estado de espírito, uma transformação, uma realidade... um momento. O que está depois do mesmo podemos imaginar, saber pela história oral que nos foi sendo transmitida ao longo do tempo, pela realidade vivida por alguém que conhecemos, por uma qualquer notícias da qual tomámos conhecimento ou até de algo que lemos num livro de História sobre este tempo e momento particular. Há, aqui, um pacto perfeito entre a história que nos foi contada e a canção escolhida para aquele momento em específico.
Sem adiantar mais, para lá da óbvia excelência técnica que a recriação de momentos específicos da História que os filmes de Alves do Ó nos têm vindo a habituar e que vão desde o guarda-roupa à direcção de arte sem esquecer a caracterização aqui tão importante e claro o magnífico elenco escolhido que dá corpo e alma a todas estas histórias dentro da História, Portugueses brinda-nos com um ora trágico ora esperançoso retrato da realidade daquilo que somos, daquilo do qual parcialmente nos libertámos, daquilo que esperamos ser nesse "amanhã" que parece tardar em chegar mas sobretudo pelo espelho sombrio que não nos faz esquecer daquilo que "foi". A importância da compreensão do passado e da História são inegáveis e a expressão "para que nunca nos esqueçamos" faz todo o sentido (cada vez mais) durante e depois de ver e reflectir sobre esta história principalmente se a enquadrarmos nos dias que se fazem sentir dentro e fora fronteiras... "terra de fraternidade.."... esperamos.
No final de Portugueses, e quase como a minha própria reflexão para lá do filme, levantam-se duas questões. O que é ser Português? E o que é a Liberdade? As respostas podem ser tão simples (ou não) como estas; ser Português é saber distinguir e dizer que gosto de Vermelho e não de encarnado. Liberdade é quando sinto e compreendo que posso dizer NÃO.



"Vasconcelos: (...) já fui um Conquistador..."

8 / 10

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