Desejos, O Amor Faz-se de Paco León é a mais recente longa-metragem espanhola a encontrar distribuição em Portugal (felizmente), naquele que é um brilhante resultado da mais pura comédia do novo cinema espanhol e uma divertida amálgama de pequenas e hilariantes histórias sobre a sexualidade.
Natalia e Álex. Paco e Ana. Maria Candelaria e António. José Luís e Paloma. E Sandra. Quatro casais e uma solitária. Todos eles com os seus problemas sentimentais e sexuais vividos num silêncio agonizante até que descobrem (descobre o espectador) aquilo que os faz despoletar e sentir a sua sexualidade verdadeira.
Por entre um conjunto de momentos dramáticos - muito leves - que apenas servem de preâmbulo à comédia que cada uma das referidas personagens encarna, Kiki, el Amor se Hace é uma forte e inteligente comédia que não deixa o espectador indiferente. Se o sexo já não é tabu - muito menos o é no cinema -, será justo dizer que Paco León o filma de forma inteligente desmistificando velhos tabus, humanizando-o bem como ao prazer que é - deverá ser - inerente à sexualidade.
Neste filme acompanhamos então quatro casais e uma solitária. "Natalia" (Natalia de Molina) e "Álex" (Álex García) são um jovem casal com os seus fetiches inconfessáveis. Ele gosta de lamber e chupar pés enquanto ela parece obter um prazer inesgotável quando colocada em situações de risco como, por exemplo, assaltos violentos. "Paco" (Paco León) e "Ana" (Ana Katz) vivem uma vida matrimonial apagada pelos receios que têm em comunicar... Até que surge "Belén" (Belén Cuesta) que desperta - em ambos - uma libido receada... por ambos. "Maria Candelaria" (Candela Peña) e "António" (Luís Callejo) são um casal apagado pela incapacidade de se tornarem pais. Incapaz de sentir desejo pelo marido, "Maria Candelaria" descobre que se excita com o sofrimento e as lágrimas alheios. Depois do acidente de "Paloma" (Mari Paz Sayago), "José Luís" (Luís Bermejo) vive um silencioso desgosto por apenas receber amargura de uma mulher agora limitada nos seus movimentos sendo esta testemunhada por "Lorelei" (Rea Gutiérrez) a empregada filipina que deseja uns seios maiores. E finalmente temos "Sandra" (Alejandra Jiménez) que se sente limitada não só pela sua deficiência auditiva como principalmente pela sua sexualidade apenas despertar quando observa certos tecidos a roçar junto da pele.
Incapazes de viver uma vida feliz e descomplexada, Paco León filma as limitações sentimentais fruto de uma incomunicabilidade sentida entre casais no seio das suas relações. O desejo que deu lugar a uma sentida "normalidade" e quase indiferença sentimental/sexual, transformou todos eles em apáticos que vivem pela rotina de uma relação que não os completa ou satisfaz. Contrariamente a Nymphomaniac (2013), de Lars Von Trier onde a sexualidade e o desejo são o retrato de uma doença psicológica incompreendida e mal tratada, esta longa-metragem espanhola remake da australiana The Little Death (2014), de Josh Lawson é o retrato de uma liberdade - e libertação - sexual que não só são saudáveis como são, principalmente, o motor para um conjunto de relações que estavam adormecidas e até mesmo extintas.
Se todas estas duplas demonstram uma química inegável, existem pequenos grandes momentos que as tornam únicas e memoráveis como, por exemplo, com a dupla "Natalia" e "Álex" e o seu assalto encenado que acaba por não correr tão bem como esperado, ou o momento entre "Paco" e "Ana" no bar fetichista onde resolvem passar uma noite de fim-de-semana, sem esquecer todo o segmento entre os "classe alta" "José Luís" e "Paloma" em que esta - durante o seu sono - é sujeita a todo o tipo de aventuras por um marido que sente ser apenas com a mulher inconsciente que consegue ter momentos íntimos que o completem. Se todos estes pequenos delírios eróticos e sexuais são delirantes, aquele interpretado por uma "Maria Candelaria" na Igreja onde o sofrimentos e as lágrimas alheias lhe conferem todo o desejo sexual que algumas vez imaginou ter é, sem margem para dúvida, o mais gracioso pelo claro piscar de olho a uma Espanha profundamente católica onde o dito de "crescei e multiplicai-vos" apenas deve ser vivido no silêncio e no escuro que quatro paredes de uma casa podem conferir a um casal. E isto sem esquecermos todo o humor negro que a grande e magnífica Candela Peña consegue recriar para provocar as lágrimas num Luis Callejo desconfiado das "boas" intenções da sua "Maria Candelaria". Finalmente, é impensável esquecer a "relação" - que ainda não o é - entre a "Sandra" de Alejandra Jiménez e o "Rubén" de David Mora que através de uma videoconferência levam à cena uma das cenas mais erótico-hilariantes de todo o Kiki, el Amor se Hace, para a qual contribui uma talentosa "Aixa" (Aixa Villagrán).
Com um elenco de luxo e uma movida inegável, Paco León demonstra com Kiki, el Amor se Hace uma verve almodovariana revitalizada e um dos títulos que será certamente recordado como exemplar dentro das comédias eróticas que para lá do sexo que está no centro de todas elas, se centra na dinâmica das relações inter-pessoais e de casal, sem esquecer que este (sexo) é um dos mais importantes contributos para a vida de um casal e que será apenas falando dele e da sua necessidade que a vida a dois (ou não) se evidenciará como completa. Os fetiches - debatidos e compreendidos - funcionam então não como algo "estranho" mas sim como o tal "motor" ou rampa para uma sexualidade vivida livre de complexos, de tabus ou travões imaginários que aos poucos vai colhendo a harmonia entre um casal que se ama mas que por medo da reacção do outro se oculta, se esconde e priva dessa vida completa.
E já bem perto do final quando todas as relações estão finalmente a ser vividas em plena felicidade, e ao som de "Enamorada" da dupla colombiana Pedrina & Rio que no ambiente de uma festa popular de bairro, todas as formas de amor são celebradas num ambiente de clara tolerância e compreensão - mesmo que "ignorada" pelos demais - "Sandra" encontra finalmente ao vivo um "Rubén" onde, no silêncio que a sua falta de audição lhes permite, se aceitam sem questões mas com o prazer de uma compreensão silenciosa mas satisfeita, vivida e consentida.
Longe - felizmente - vão os tempos em que o sexo era apenas e só ou um tabu ou um pretexto para as mais grosseiras comédias sem graça. Em Kiki, el Amor se Hace, e ainda que maioritariamente explícitos todos os momentos vividos pelas suas personagens, o sexo é acima de tudo uma forma de comunicabilidade que é restabelecida e uma vivência em harmonia que se completa. De disfuncional a normal, o sexo transforma-se, pelas mãos de Paco León realizador e intérprete, no veículo de comunicação agora reaberto, para que todos os casais presentes e futuros possam reencontrar toda uma alegria de viver que estava, até então, extinta das suas vidas.
Cómico, divertido, sensual, agressivo, transgressor ou aventureiro. Todos estes adjectivos ficariam - pela positiva - bem aplicados a Kiki, el Amor se Hace, esta nova comédia de Paco León que confirma, uma vez mais, ser um dos nomes fortes de um novo e revigorante cinema espanhol que não se esconde nem tem vergonha - ou tabus - de se assumir em todas as suas vertentes como grande pela forma e pelas histórias que conta através de um conjunto de actores que encarnam almas que demonstram que vale a pena viver uma vida partilhada e de forma livre.
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8 / 10
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