O Ornitólogo de João Pedro Rodrigues é uma longa-metragem portuguesa e o mais recente filme do realizador de O Fantasma (2000), Odete (2005), Morrer como um Homem (2009) e A Última Vez que Vi Macau (2012).
Fernando (Paul Hamy) é - tal como já antevê o título desta obra - um ornitólogo. Num qualquer vale observa as aves no seu habitat natural e aventura-se pelo rio onde inadvertidamente perto o controle da pequena canoa em que viaja. Inconsciente numa das suas margens, Fernando é salvo por Lin (Chan Suan) e Fei (Han Wen), duas turistas chinesas que fazem um caminho religioso mas que revelam as suas próprias intenções durante o mesmo.
Observando todo um novo universo desconhecido até então, Fernando encontra-se num estranho limbo que o separa do mundo que conhece daquele que está prestes a descobrir.
Uma obra assinada por João Pedro Rodrigues é, por si só, significado para o espectador mais atento de que está prestes a assistir a um trabalho original e que irá certamente figurar entre os mais emblemáticos do ano... nacionais e não só. Aqui, e seguindo uma (sua) linha condutora no que à irreverência diz respeito, Rodrigues cruza o sagrado e o profano na história e na abordagem que confere ao seu protagonista "Fernando". O argumento, também da sua autoria, apresenta assim este homem pacato e observador cuja missão está em documentar a vida natural das aves da região, seus hábitos e costumes enquanto que espera pacientemente pela possibilidade de comunicar com alguém que está do outro lado da "linha" de telefone com quem - insistentemente - não consegue comunicar.
Como que um registo desta metamorfose porvir e símbolo de uma comunicação que não consegue estabelecer com esse que é lentamente registado como o seu passado, "Fernando" lança-se mais afincadamente na observação das aves que - também elas - o começam a observar do alto como se se tratassem de uma observação "divina" natural dos seus actos e comportamentos. Aliás, por momentos o espectador acaba não por assistir ao ponto do vista deste homem perdido na floresta mas sim à observação que dele é feita como se fosse necessário comprovar a sua existência e os seus feitos. "Fernando" está (in)conscientemente à prova por parte desse algo divino e do espectador que observa essa transformação de libertação de um passado nunca devidamente comprovado.
Neste início de observação e transformação, "Fernando" perde-se nas águas rápidas de um rio selvagem sendo mais tarde recolhido das mesmas por duas chinesas que caminham pelas florestas rumo a um espaço sagrado... algo que pretendem conhecer como o seu próprio ritual de "crescimento" espiritual mas que é subitamente subvertido quando ambas decidem - de certa forma - sodomizar o homem que retiraram das águas. "Fernando" de homem agradecido e sofrido passa a vítima de duas mulheres que acusam a floresta de estar ocupada por estranhos espíritos - serão elas?! - que as perseguem e querem prender aos seus truques e rituais de perdição. O instinto carnal assumido e explícito deste breve encontro com contornos BDSM como que se o espectador assisti-se a uma punição, tanto transformam "Fernando" num homem cativo de um passado do qual se pretende libertar como em alguém que retira um inesperado prazer sexual pelas amarras que lhe conferem - atempadamente - um instinto de luta e sobrevivência e, como tal, no primeiro passo rumo a essa metamorfose que assola um homem em busca de uma fé que a própria natureza lhe havia custado a revelar. Entre os planos das duas mulheres que tencionam eliminá-lo e a sua vontade de chegar a um certo plano existencial onde se iria libertar deste seu encarceramento espiritual, "Fernando" consegue uma inesperada e árdua fuga que o colocam como parte desse estado natural e em direcção ao seu ponto de partida.
No entanto, é nesta fuga que o nosso protagonista encontra os primeiros sinais de uma floresta com vida própria, que cruza ancestrais rituais pagãos de uma população - ou espíritos?! - que festeja e celebra uma certa imoralidade, que se escondem por detrás de máscaras que nos fazem ignorar a sua verdadeira identidade e que, ao mesmo tempo, exalam uma certa perversão sexual que "Fernando" ou ignora ou que o finge como seu próprio prazer e auto-satisfação. De identidade ocultada - destes mafarricos - à sua que é subtilmente "roubada" quando descobre os seus documentos adulterados com a sua foto queimada e impressão digital eliminada, "Fernando" (Magalhães no BI) percebe e sente que afinal não se encontra tão solitário naquele percurso como inicialmente julgava.
De rituais profanos ao surgimento da sombra de uma cabra - o diabo?! - numa noite de festejo, também ele profano, "Fernando" perde-se nas deduções de alguém em auto-descoberta até ao dia seguinte em que rompe decididamente com um passado nunca clarificado ao deixar-se levar pelos encantos de um "Jesus" (Xelo Cagiao) pastor (de almas?) mudo por quem se deixa seduzir. É esta relação - que não resultará por muito tempo - que o leva a ultrapassar definitivamente os seus limites quando após uma luta "Jesus" é acidentalmente esfaqueado e morto - por ele - com um punhal (lança) no peito... (será ele o próprio?!)...
O trajecto de "Fernando" - mais ou menos acidental - enigmático e quase surreal levam-no a vários encontros... com uma capela perdida onde continua a ser observado dos céus e até mesmo "visitado" por uma pomba de asa partida que habilmente tenta salvar ou, mais tarde, por todo um conjunto de animais que revelam a fronteira ultrapassada de uma vida antiga para aquela que é (agora) a sua nova realidade. Do seu primeiro sermão aos peixes - a simbologia pré-Cristandade aqui assumida - ou de como os mesmos residem num espaço imundo quando poderiam ser habitantes de qualquer outro lugar mais aprazível - a libertação e liberdade do ser e do espírito ao alcance de todos em vez de uma submissão a normais ditas "aceites" e a espaços de "pertença" previamente estabelecidos - ao encontro com caçadoras que com ele comunicam em latim e o revelam - expõem? - como "António" (de Paul Hamy a João Pedro Rodrigues) - o dito santo - homem de antigos prazeres da carne, sem esquecer o encontro com "Tomé" (Xelo Cagiao) gémeo de "Jesus" que ele assassinara involuntariamente.
Da simbologia da Cristandade ao paganismo no qual muita da mesma se fundamentou - e fundamenta -, sem esquecer os rituais da carne, da sensualidade e principalmente da sexualidade como uma parte integrante do Homem, da Humanidade e, como tal, da sua perpetuação, O Ornitólogo é ainda um relato sobre a existência, sobre o ser, sobre esse mesmo Homem (ou homem?!), sobre a sua vulnerabilidade às ditas coisas mundanas de uma vida que é de constante liberdade e libertação do "pré-estabelecido" numa sempre presente dinâmica de religioso versus profano... do que é aceite e convencional ao que é proibido e experimental e da sua compreensão que não é um dito santo mas sim alguém disposto a ver, registar, compreender mas sobretudo sentir... prazer. Prazer esse que à margem da sexualidade experimentada é exposto como o culminar de uma liberdade então sentida e reflectida rumo a Pádua ao som de uma "Canção do Engate" de António Variações.
Assumidamente desafiador com o seu cinema, João Pedro Rodrigues impõe-se pela originalidade das suas histórias, pela simbologia inerente a cada momento de personagens que se descobrem e revelam - do "Sérgio" de Ricardo Meneses em O Fantasma (2000), passando pela "Odete" de Ana Cristina Oliveira em Odete (2005) sem esquecer a "Tonia" de Fernando Santos em Morrer como um Homem (2009) - até ao tal sentimento de uma liberdade que se expõe pouco convencional para os demais mas essencial para essa libertação do espírito por muito tortuoso ou atormentado que possa apresentar mas que se assume fiel e digno para com esse "eu" que se revela, bem como pela forma como dá corpo e credibilidade a todas estas almas eventualmente perdidas num universo de um preconceito pré-estabelecido - a tal Cristandade talvez (des)virtualizada dos seus princípios primários - que são tal como todos os demais e que esperam apenas um simples e básico elemento perdido em todas as afirmações de imposições de crenças religiosas perdidas na sua própria auto-afirmação... a capacidade de querer e querer ser... amado.
Com uma brilhante fotografia de Rui Poças que capta esse algo "etéreo" que observa sem interferir e uma inspirada interpretação de Paul Hamy, um dos mais carismáticos actores franceses do momento, que dá corpo ao "antes" de um "António" assumido, O Ornitólogo é um filme sobre o "ser" e o viver bem com esse algo escondido que anseia por se libertar. Um filme sobre a reflexão e exposição do "eu" reprimido nos cânones (moralmente) impostos que primeiro vinculam e depois oprimem impedindo - de facto - o tal divino que todos deveriam simplesmente viver e, como tal, transforma-se este tão aguardado filme numa das mais importantes e significativas obras deste ano cinematográfico nacional e mais uma do emblemático legado que o realizador deixa ao cinema nacional.
Da simbologia da Cristandade ao paganismo no qual muita da mesma se fundamentou - e fundamenta -, sem esquecer os rituais da carne, da sensualidade e principalmente da sexualidade como uma parte integrante do Homem, da Humanidade e, como tal, da sua perpetuação, O Ornitólogo é ainda um relato sobre a existência, sobre o ser, sobre esse mesmo Homem (ou homem?!), sobre a sua vulnerabilidade às ditas coisas mundanas de uma vida que é de constante liberdade e libertação do "pré-estabelecido" numa sempre presente dinâmica de religioso versus profano... do que é aceite e convencional ao que é proibido e experimental e da sua compreensão que não é um dito santo mas sim alguém disposto a ver, registar, compreender mas sobretudo sentir... prazer. Prazer esse que à margem da sexualidade experimentada é exposto como o culminar de uma liberdade então sentida e reflectida rumo a Pádua ao som de uma "Canção do Engate" de António Variações.
Assumidamente desafiador com o seu cinema, João Pedro Rodrigues impõe-se pela originalidade das suas histórias, pela simbologia inerente a cada momento de personagens que se descobrem e revelam - do "Sérgio" de Ricardo Meneses em O Fantasma (2000), passando pela "Odete" de Ana Cristina Oliveira em Odete (2005) sem esquecer a "Tonia" de Fernando Santos em Morrer como um Homem (2009) - até ao tal sentimento de uma liberdade que se expõe pouco convencional para os demais mas essencial para essa libertação do espírito por muito tortuoso ou atormentado que possa apresentar mas que se assume fiel e digno para com esse "eu" que se revela, bem como pela forma como dá corpo e credibilidade a todas estas almas eventualmente perdidas num universo de um preconceito pré-estabelecido - a tal Cristandade talvez (des)virtualizada dos seus princípios primários - que são tal como todos os demais e que esperam apenas um simples e básico elemento perdido em todas as afirmações de imposições de crenças religiosas perdidas na sua própria auto-afirmação... a capacidade de querer e querer ser... amado.
Com uma brilhante fotografia de Rui Poças que capta esse algo "etéreo" que observa sem interferir e uma inspirada interpretação de Paul Hamy, um dos mais carismáticos actores franceses do momento, que dá corpo ao "antes" de um "António" assumido, O Ornitólogo é um filme sobre o "ser" e o viver bem com esse algo escondido que anseia por se libertar. Um filme sobre a reflexão e exposição do "eu" reprimido nos cânones (moralmente) impostos que primeiro vinculam e depois oprimem impedindo - de facto - o tal divino que todos deveriam simplesmente viver e, como tal, transforma-se este tão aguardado filme numa das mais importantes e significativas obras deste ano cinematográfico nacional e mais uma do emblemático legado que o realizador deixa ao cinema nacional.
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"Música final: Tu estás livre e eu estou livre
E há uma noite para passar
Porque não vamos unidos
Porque não vamos ficar
Na aventura dos sentidos (...)"
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"Música final: Tu estás livre e eu estou livre
E há uma noite para passar
Porque não vamos unidos
Porque não vamos ficar
Na aventura dos sentidos (...)"
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8 / 10
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