Alma Clandestina de José Barahona (Brasil) é um dos documentários presentes na secção Da Terra à Lua da décima-sexta edição do DocLisboa - Festival Internacional de Cinema a decorrer na capital até ao próximo Domingo.
Maria Auxiliadora Lara Barcellos. Activista política que lutou contra a ditadura no Brasil na década de '60 e que se viu forçada a viver no exílio na América Latina e na Europa depois de períodos de detenção e tortura. Dorinha, como era conhecida pelos que lhe eram mais próximos, suicidou-se em 1976 em Berlim deixando, no entanto, um legado de vida que deve ser novamente analisado.
Depois de Estive em Lisboa e Lembrei de Você (2015) essa obra (não tão) ficcionada sobre a emigração brasileira para a capital portuguesa, o realizador José Barahona regressa com esta obra documental que versa sobre um importante e não tão distante período da História recente do Brasil que não só é pertinente pela sua contextualização histórica como principalmente pelos tempos que hoje o país vive onde a política regride voluntariamente a estes idos anos.
Se em Estive em Lisboa e Lembrei de Você Barahona explora a dinâmica de um cidadão brasileiro em busca de melhores dias para a sua vida, encontrando em Lisboa o tal "eldorado" sob a forma de uma solidão que pode, no entanto, proporcionar-lhe um novo começo - não necessariamente melhor -, em Alma Clandestina o realizador propõe um olhar pertinente, perturbador, não distante e actual sobre a vida de uma activista política que, como tantos outros, incluindo o "Sérgio" interpretado por Paulo Azevedo na já mencionada obra, mais não procura do que uma vida justa e igualitária com todas as oportunidades que são sentidas como merecidas. Mas, bem distante da ficção, aquilo que Alma Clandestina proporciona ao espectador é, para lá de uma história, um relato sobre a crueldade de um regime que (se) impõe eliminando sem qualquer pudor todos os que lhe façam frente.
Foi neste período de ditadura militar iniciado em 1964 e que apenas viria a terminar em 1985 que o Brasil viu não só o seu retrocesso nas liberdades individuais como também culturais o que levou a Maria Auxiliadora Barcellos a uma vida de exílio que a fez passar pelo Chile, México, Bélgica, França e Alemanha. Neste período, distante da sua família e do país onde nascera, a activista viria a estabelecer um conjunto de comunicações com a sua família no Brasil e que Alma Clandestina aborda como uma forma de conhecer não só a política (contemporânea de Dilma Rousseff), como também - e principalmente - a mulher por detrás de toda esta militância.
"Dorinha" é caracterizada por todos como uma mulher forma de aparência frágil. Alguém capaz de discutir assertivamente assuntos sociais e políticos deixando aqueles que a escutavam interessados e conscientes mas, ao mesmo tempo, é o distanciamento desta mulher do seu ambiente natural que a caracterizam como uma mulher de certa forma atormentada com a impossibilidade de uma liberdade vivida nesse seu Brasil cada vez mais distante. Maria Auxiliadora Barcellos viria a morrer - por suicídio - em Berlim em 1976 com 31 anos de idade. Longe da Democracia que tanto ambicionara para o seu país, seriam os tormentos de uma vida "em fuga" que viriam a caracterizar o seu pensamento, o seu comportamento e principalmente a sua queda física e emocional longe desse país que se deixou mergulhar numa ditadura que perseguia, torturava e eliminava aqueles que se lhe opunham. É esta dinâmica, para lá dessa contextualização histórica que é aqui tão bem enquadrada pelo realizador, que se explora dando assim forma à mente e ao pensamento de uma mulher atormentada, fisicamente distante mas mentalmente comprometida com um desejo de liberdade e Democracia que o país não vivia. Num momento é inclusive equiparado ao sentimento de "Dorinha" aquele tido pelos escravos africanos que compreendiam nunca mais pisar a sua terra levados pelos barcos negreiros para as terras de Vera Cruz... banzu... uma profunda nostalgia e saudade que a levaram a querer representar toda uma nova vida nessa clandestinidade que era, também ela, opressora e limitadora na medida em que não lhe conferiam qualquer possibilidade de viver a sua vida nesse Brasil que sempre sonhara e imaginara... o tal no qual "olhava para o céu que a alimenta", revelador da sua extrema esperança nesse lugar comum a que todos nós em liberdade apelidamos de "dias melhores".
Os seus pensamentos inundam os testemunhos daqueles que com ela conviveram assim como as cartas que deixara para trás como desabafos de uma vida... vivida mas saturada... desencantada até. O desencanto pela ideia de um Brasil "caridoso" no qual afirma existir apenas pela inferioridade do ."outro" e que denuncia toda a sua fragilidade emocional e revolta psicológica pela perpetuação de um regime que insistia na diminuição dos que com ele não concordam e até mesmo por uma incerteza que a colocava e aos demais militantes numa condição oscilante entre "exilados" e "banidos" impossibilitando-os de qualquer reconhecimento internacional independentemente do local em que se encontrassem.
Mas, são as memórias desse período de torturas e dos seus torturadores que tudo utilizavam da agressão física e emocional sem esquecer a sexual que, em boa medida, Alma Clandestina apresenta ao espectador. Contrariamente a tantos outros documentários do género, aqui José Barahona centra a dinâmica de uma acção não nos infindáveis relatos sobre o que se passava para lá das paredes de uma qualquer prisão para onde eram levados os opositores políticos mas sim nos testemunhos na primeira pessoa sobre o que por lá acontecia. Não escutamos momentos sobre tortura ou pressão física e psicológica que qualquer um de nós mais atento ou interessado nestes documentos históricos já não conheça de tantas outras obras. Aqui, por sua vez, escutamos os desabafos de uma dessas intervenientes e compreendemos principalmente a sua degradação emocional enquadrando as suas palavras - bem como o que elas escondem - no período histórico em questão e a sua involuntária perda para com esses pensamentos questionando-se o espectador por diversas vezes sobre o trauma que a memória guarda dividindo Maria Auxiliadora em três momentos específicos... um certo ideal de felicidade junto dos seus... a dor e a revolta de um presente de tortura e fuga... e finalmente a compreensão de um futuro que (in)conscientemente reconhecia ser incerto. Para lá de qualquer registo sobre a ditadura - a noção pressupõe (ou deveria) per si toda uma conotação negativa - Alma Clandestina é sim o registo da força de vida de uma mulher mas também das suas ânsias e fragilidades que lentamente a consumiram e se transformaram num desespero crescente e imparável.
Baseado em testemunhos daqueles que com ela conviveram, em diversas das suas cartas e em textos como Continuo Sonhado e Buti, Alma Clandestina é o documentário necessário e pertinente não só enquanto um documento histórico como também enquanto um espelho dos dias que agora estão novamente a ser vividos no Brasil, onde o discurso político ultra-radicalizado ganha toda uma nova dinâmica e no qual parece novamente querer perseguir aqueles que se lhe opõem ou são considerados "inimigos", criando divisões, grupos e segmentos de exclusão e sobretudo uma certa consciência social da existência de um "eu" e o "outro" residindo na primeira pessoa essa ideia de positividade e iluminação que é imediatamente confiscada a todos aqueles que não partilham o mesmo ideal do "líder" e da silenciosa ditadura que se instala... com o consentimento de um povo nem sempre esclarecido e tantas vezes politicamente ignorante que procura um Messias num suposto rosto de lei carismático e igualmente perigoso.
A alma, mesmo enclausurada, nunca se transforma em capturada. O testemunho da vida de Maria Auxiliadora Barcellos aqui trazido ao grande ecrã por José Barahona comprova sim, que pode ser frágil, que pode tremer ou até mesmo viver nessa clandestinidade que o próprio título do documentário assume... Mas é esse mesmo tormento e até mesmo essa clandestinidade que a tornam livre... Livre de escolher o seu dia e o seu amanhã dentro de todas as incertezas que lhe estão inerentes a uma vida que é, de certa forma, vivida num cativeiro a céu aberto, sem paredes ou grades que o tolhem mas que, ao mesmo tempo, não lhe possibilitam a proximidade aos seus e ao que é seu como a mesma desejaria.
Assim, se Alma Clandestina é importante por esta perspectiva histórica e pessoal da vida de uma mulher que é essencialmente intemporal... mais relevante se transforma a partir do momento em que o espectador consciente compreende os dias pelos quais o Brasil, e até mesmo um pouco do mundo, atravessa.
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"Estar vivo e existir não é respirar... É sentir uma pulsação que te empurra."
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8 / 10
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