
Era Uma Vez no Apocalipse de Tiago Pimentel (Portugal) é uma curta-metragem que conta a história de um Portugal, não muito longe no tempo e que, tal como a demais Humanidade, vive no rescaldo de um terceiro conflito mundial. No país, agora com um governo totalitário, é imposta uma lei marcial que impede a população de circular livremente. Ernesto (Sérgio Godinho) sabe quais as intenções deste governo e é quando o Coronel Salaviza (Paulo Calatré) lhe bate à porta que se desenrola um jogo de insinuações, segredos e mentiras.
Logo desde os primeiros instantes de Era Uma Vez no Apocalipse que percebemos que o meio - físico e temporal - é desolado e desolador. As realidades do território não são aquelas que conhecemos neste presente que afectado pela guerra e pelas suas devastadoras consequências - políticas, sociais e económicas - e tendo lançado tudo e todos num rumo de miséria originaram um governo totalitário que tem a sua própria agenda para o controlo e domínio do país. A intimidação, o medo, as proibições e o totalitarismo sentem-se nesta dinâmica desde o momento em que os dois homens se confrontam num jogo de palavras e insinuações que fazem mais gelar o interior daquela casa do que o aparente frio do Inverno nuclear que se sente lá fora. As suspeitas que ambos têm não são mera ficção. Os dois sabem que cada um deles sabe e esconde mais do que aquilo que aparentemente querem revelar e é apenas uma questão de colocar tudo "à prova" para saber sim qual a dimensão das ditas suspeitas. E toda a dinâmica desta curta-metragem é centrada aqui, nos discursos, olhares e confirmadas suspeitas que cada um destes homens tem sobre o outro.
Enquanto esta dinâmica se desenvolve, o espectador quase esquece a jovem Helena (Mariana Pacheco) que se escondeu naquela casa, ao ponto de quase ignorar que muita da dinâmica entre os dois homens se deve essencialmente aos actos que a jovem teve ao entrar na zona proibida para afazeres que se desconhecem. Compreendemos que algo se passa graças à intervenção que "Ernesto" tem com ela antes de a mandar esconder-se de "Salaviza" mas, ainda assim, tudo é estranho para lá do momento que se mantém tenso. Porquê? Para quê? O que existirá de tão estranho ou proibido para lá dos limites ou fronteiras "aceitáveis" desta nova realidade? Cedo compreendemos que este conflito nuclear dizimou a sociedade. Dizimou instituições e, como em qualquer época de crise, quem tem força militar conquistou o que sobrou no pós-conflito. Muitos devem ter sido os que desaparecerem com o mesmo limitando a população a números diferentes de outros tempos como sobretudo os recursos para os fazer substituir. Sendo estes raros até que ponto todos têm direito a algo? Se o pensamento do espectador se encaminha neste percurso aceitando que a luta dos sobreviventes é ter subsistência e do novo poder o controlo desses mesmos recursos, é a revelação do verdadeiro drama que o assola e faz perceber que a dinâmica da sociedade e mesmo a sua própria sobrevivência está em risco se não se conseguir garantir sobretudo a própria "geração seguinte". Muito num estilo de Children of Men (2006), de Alfonso Cuarón, o que aconteceria se, de repente, deixassem de existir crianças que garantissem o futuro? Ou pior... no caso de existirem, até que ponto seriam vistas como um "empecilho" que esgota o pouco que existe... e sobretudo o pouco que existe desse novo poder que se assume como dono e senhor de tudo e de todos?!
O "novo poder" é, como cedo esperamos, intimidante, intrusivo, inquiridor ou até mesmo inquisidor, regulador pela ordem e pela moral que institui como "certa" e castrador. O "Coronel Salaviza" de Paulo Calatré é tudo isso. E mais. Se o "Ernesto" de Sérgio Godinho se prende com a réstia de moral que se espera de alguém que, tal como a maioria dos demais sobreviventes, se rege por um qualquer ideal de um amanhã melhor, Calatré dá corpo àquela sombra que surge (literalmente) por detrás do nosso ombro e atormenta qualquer tipo de existência ou esperança fazendo ver e crer, qual São Tomé, numa nova ordem quase bíblica do qual apenas e só ele é detentor e garante. A ordem (dele) existe. "Salaviza" irá impô-la nem que para isso precise de eliminar todos os que ousem querer ver (ou viver) o mundo de uma forma diferente. Na realidade a liberdade de uns não afectaria a existência dos outros mas para o coronel a mais ínfima réstia de esperança noutra realidade é uma ameaça por si só. Se a dinâmica entre os actores existe - e existe -, verdade será que é a personagem de Calatré que exala a todo o instante a perfeição e encarnação desse mal que espreita a todas as esquinas e aquela que, não mostrando qualquer reserva nos seus fins e propósitos, consegue captar para si todos os olhares... resista, no final, ou não.
Toda a dinâmica deste filme curto é centrada naquela casa rudimentar e não poderia ter sido criado melhor ambiente para recriar esses dias do fim. O ambiente exterior, ainda que permaneça a curiosidade no espectador, acaba por ser prescindível. Ali tudo acontece e dá um retrato perfeito do que pode ser esse "lá fora". Sabemos que existem carências, que a comunicação com todo o mundo exterior é não só perigosa como complicada e pode colocar todos em risco e sobretudo compreendemos a partir dali que a própria sobrevivência pode, a qualquer momento, ser travada por qualquer elemento... pela fome, pelo crime, pelo governo ou até mesmo por uma qualquer derrocada que ponha fim àquela casa. Nada é certo e seguro e a partir dali, daqueles breves momentos em que observamos o ambiente ao nosso (deles) redor percebemos que o fim é apenas uma realidade a curto ou médio prazo. Ainda um destaque para a direcção de fotografia de Tomás Brice que capta com rigor o imaginário desse fim dos tempos que se espera num filme do género e que é, sem dúvida, mais um dos fortes elementos deste filme curto feito com rigor e precisão afastando-se dos habituais lugares comuns do género e entregando uma história que além do entretenimento leva o espectador a questionar-se sobre a possibilidade de uma qualquer "nova ordem" que limite direitos e liberdades impondo a sua "moral" não desejada.
Logo desde os primeiros instantes de Era Uma Vez no Apocalipse que percebemos que o meio - físico e temporal - é desolado e desolador. As realidades do território não são aquelas que conhecemos neste presente que afectado pela guerra e pelas suas devastadoras consequências - políticas, sociais e económicas - e tendo lançado tudo e todos num rumo de miséria originaram um governo totalitário que tem a sua própria agenda para o controlo e domínio do país. A intimidação, o medo, as proibições e o totalitarismo sentem-se nesta dinâmica desde o momento em que os dois homens se confrontam num jogo de palavras e insinuações que fazem mais gelar o interior daquela casa do que o aparente frio do Inverno nuclear que se sente lá fora. As suspeitas que ambos têm não são mera ficção. Os dois sabem que cada um deles sabe e esconde mais do que aquilo que aparentemente querem revelar e é apenas uma questão de colocar tudo "à prova" para saber sim qual a dimensão das ditas suspeitas. E toda a dinâmica desta curta-metragem é centrada aqui, nos discursos, olhares e confirmadas suspeitas que cada um destes homens tem sobre o outro.
Enquanto esta dinâmica se desenvolve, o espectador quase esquece a jovem Helena (Mariana Pacheco) que se escondeu naquela casa, ao ponto de quase ignorar que muita da dinâmica entre os dois homens se deve essencialmente aos actos que a jovem teve ao entrar na zona proibida para afazeres que se desconhecem. Compreendemos que algo se passa graças à intervenção que "Ernesto" tem com ela antes de a mandar esconder-se de "Salaviza" mas, ainda assim, tudo é estranho para lá do momento que se mantém tenso. Porquê? Para quê? O que existirá de tão estranho ou proibido para lá dos limites ou fronteiras "aceitáveis" desta nova realidade? Cedo compreendemos que este conflito nuclear dizimou a sociedade. Dizimou instituições e, como em qualquer época de crise, quem tem força militar conquistou o que sobrou no pós-conflito. Muitos devem ter sido os que desaparecerem com o mesmo limitando a população a números diferentes de outros tempos como sobretudo os recursos para os fazer substituir. Sendo estes raros até que ponto todos têm direito a algo? Se o pensamento do espectador se encaminha neste percurso aceitando que a luta dos sobreviventes é ter subsistência e do novo poder o controlo desses mesmos recursos, é a revelação do verdadeiro drama que o assola e faz perceber que a dinâmica da sociedade e mesmo a sua própria sobrevivência está em risco se não se conseguir garantir sobretudo a própria "geração seguinte". Muito num estilo de Children of Men (2006), de Alfonso Cuarón, o que aconteceria se, de repente, deixassem de existir crianças que garantissem o futuro? Ou pior... no caso de existirem, até que ponto seriam vistas como um "empecilho" que esgota o pouco que existe... e sobretudo o pouco que existe desse novo poder que se assume como dono e senhor de tudo e de todos?!
O "novo poder" é, como cedo esperamos, intimidante, intrusivo, inquiridor ou até mesmo inquisidor, regulador pela ordem e pela moral que institui como "certa" e castrador. O "Coronel Salaviza" de Paulo Calatré é tudo isso. E mais. Se o "Ernesto" de Sérgio Godinho se prende com a réstia de moral que se espera de alguém que, tal como a maioria dos demais sobreviventes, se rege por um qualquer ideal de um amanhã melhor, Calatré dá corpo àquela sombra que surge (literalmente) por detrás do nosso ombro e atormenta qualquer tipo de existência ou esperança fazendo ver e crer, qual São Tomé, numa nova ordem quase bíblica do qual apenas e só ele é detentor e garante. A ordem (dele) existe. "Salaviza" irá impô-la nem que para isso precise de eliminar todos os que ousem querer ver (ou viver) o mundo de uma forma diferente. Na realidade a liberdade de uns não afectaria a existência dos outros mas para o coronel a mais ínfima réstia de esperança noutra realidade é uma ameaça por si só. Se a dinâmica entre os actores existe - e existe -, verdade será que é a personagem de Calatré que exala a todo o instante a perfeição e encarnação desse mal que espreita a todas as esquinas e aquela que, não mostrando qualquer reserva nos seus fins e propósitos, consegue captar para si todos os olhares... resista, no final, ou não.
Toda a dinâmica deste filme curto é centrada naquela casa rudimentar e não poderia ter sido criado melhor ambiente para recriar esses dias do fim. O ambiente exterior, ainda que permaneça a curiosidade no espectador, acaba por ser prescindível. Ali tudo acontece e dá um retrato perfeito do que pode ser esse "lá fora". Sabemos que existem carências, que a comunicação com todo o mundo exterior é não só perigosa como complicada e pode colocar todos em risco e sobretudo compreendemos a partir dali que a própria sobrevivência pode, a qualquer momento, ser travada por qualquer elemento... pela fome, pelo crime, pelo governo ou até mesmo por uma qualquer derrocada que ponha fim àquela casa. Nada é certo e seguro e a partir dali, daqueles breves momentos em que observamos o ambiente ao nosso (deles) redor percebemos que o fim é apenas uma realidade a curto ou médio prazo. Ainda um destaque para a direcção de fotografia de Tomás Brice que capta com rigor o imaginário desse fim dos tempos que se espera num filme do género e que é, sem dúvida, mais um dos fortes elementos deste filme curto feito com rigor e precisão afastando-se dos habituais lugares comuns do género e entregando uma história que além do entretenimento leva o espectador a questionar-se sobre a possibilidade de uma qualquer "nova ordem" que limite direitos e liberdades impondo a sua "moral" não desejada.
8 / 10
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