sábado, 26 de setembro de 2015

Beira-Mar (2015)

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Beira-Mar de Filipe Matzembacher e Marcio Reolon é uma longa-metragem brasileira presente na respectiva secção competitiva desta décima-nona edição do QueerLisboa - Festival Internacional de Cinema Queer que decorre até este sábado no Cinema São Jorge.
Martín (Matheus Almada) tem de visitar a família paterna para, na consequência da morte do avô, receber um documento que precisa de entregar ao seu pai. Tomáz (Maurício Barcellos), seu amigo de longa data, acompanha-o como forma de revitalizarem a amizade e passarem algum tempo juntos.
Depois de alguma resistência por parte da família paterna que o recebe com alguma indiferença, Martín passa as horas num convívio com Tomáz e outros amigos celebrando a sua amizade e as memórias que ambos partilham. Mas pelo meio nos espaços mais reservados sente-se um silêncio... O silêncio ruidoso que o mar transporta.
A dupla de realizadores e argumentistas Matzembacher e Reolon celebram com este filme uma sentida homenagem àquele espaço específico onde eles - e muitos de nós - recordam as suas mais ternas e saudosas experiências e momentos. Aquele espaço onde nos transformamos quer pela força da idade e do tempo que passa quer pelos acontecimentos e situações que ali vivemos e que nos mostraram como o mundo é - era - tão diferente daquilo que hoje conhecemos. No fundo, celebram o espaço onde a nossa inocência ficou depositada - e perdida - e ao qual anos passados nos custa regressar não pelo desagrado do mesmo mas sim pela imagem do que fomos antes... aquele "ser" agora irreconhecível.
Beira-Mar é não só um filme sobre esse regresso ao passado mas também uma longa-metragem que perspectiva a dificuldade das relações e interacções familiares ou sobre aquilo - aqui não mencionado - que em tantas situações provoca um afastamento entre as famílias e que com o passar do tempo perde uma própria explicação... um motivo. Aqui o reencontro acontece à custa de uma morte. A morte de um avô... a figura central de uma família que se desfez e que o passar do tempo apenas fez alimentar ressentimentos que o espectador apenas pode associar à incompatibilidade de feitios e comportamentos que aos poucos foram crescendo ao ponto de não só se encontrarem irreparáveis como injustificáveis pela forma como não foram discutidos e resolvidos.
As memórias - aquelas que "Martin" partilha - apontam para essa incompatibilidade do seu pai não só com o próprio filho, mas também para com a demais família que se distancia como segurança para não ser magoada com o seu afastamento. As memórias - no fundo aquilo de que Beira-Mar trata - outrora perfeitas são agora meras lembranças distantes que ninguém ousa mencionar e a criação de elos com alguém que agora chega e que no fundo mal se conhece são, à partida, difíceis de estabelecer. Afinal, "Martin" mais não é para a sua avó, tio e prima a memória de um filho e irmão que partiu sem nada mais dizer, originando assim uma recepção que não só é fria e tensa como distante e (in)diferente.
Por outro lado temos ainda a relação de "Martin" e "Tomáz" que é inicialmente o espelho de dois amigos que se reencontram e tentam reatar laços, recordando o seu passado e a cumplicidade que é notória. A interacção entre os dois jovens - convincentes Almada e Barcellos - tanto se sente de dois amigos como aquela tida entre dois namorados cúmplices e cujos detalhes da sua intimidade são mutuamente conhecidos. Existem segredos, provavelmente aqueles que nenhum ousa contar com medo da incompreensão do outro, mas que se dissipam com a sugestão criada através de pequenos detalhes... os movimentos aquando de um jogo de playstation... o eterno jogo da garrafa que sugere uma proximidade (não) confirmada, ou até mesmo a eventual nudez que surge como mote para um olhar mais ou menos indiscreto confirmando assim um desejo latente.
Por um lado temos um "Martín" perdido entre uma casa física e uma psicológica que o impedem de partir com convicção rumo a uma delas e que, como o próprio confirma, o fazem anos e anos sem fim recordar um momento específico na sua vida como se de um sonho recorrente se tratasse. Por outro a certeza de "Tomáz" numa amizade que pode vir a ser um pouco mais e que se revela como um desejo não tão secreto de ambos.
No final o mar... o azul do mar (tal como o do cabelo de "Tomáz") confirmam que "Martin" tem realmente uma casa.. junto do azul que o conforta, que o seduz e o faz esquecer o que se encontra à sua volta bem como aquele pensamento persistente sobre qual será o seu verdadeiro lugar. O próprio sabe que tem de voltar à sua casa mas não será esta ali junto da avó e tio perto do mar que está sempre presente no seu pensamento?
Beira-Mar deixa mais perguntas em aberto do que aquelas a que dá realmente uma resposta... No fundo, reflecte mais sobre o que não se disse do que sobre aquilo que foi proferido... Irá "Martin" regressar a casa ou ficar pela sua terra natal? Irá ele voltar daquele banho matinal do mar ou desaparecer sem deixar rasto? Ficará a sua relação com "Tomáz" apenas pela amizade que sempre os uniu ou irá desenvolver para algo mais? O que acontecerá se o documento que tinha de levar ao pai nunca chegar na realidade? Existirá uma relação familiar no futuro ou tudo ficará no esquecimento como antes? É esta falta de resposta que acaba por se tornar num dos mais interessantes aspectos deste filme que prima pela sugestão e pelo registo de uma memória sem, no entanto, se confinar à mesma, permitindo assim ao espectador celebrar e obter as suas próprias respostas presas apenas ao seu próprio subconsciente e não a um pré-julgamento feito e que poderá apenas colmatar as respostas de alguns de nós.
A química entre a dupla Almada e Barcellos é, também ela, um dos pontos fortes desta longa-metragem que celebra acima de tudo o poder da confiança apenas inerente a uma forte e cúmplice amizade não esquecendo, no entanto, marcantes personagens secundárias como o ambíguo "Bento" interpretado por Fernando Hart, a intensa avó "Marisa" de Irene Brietzke ou o intenso e não tão rude "Maurício" de Francisco Gick e que deixam o nosso imaginário divagar sobre o seu passado, os seus traumas e questões por responder. No fundo, todos eles parecem ter, com o tempo, perdido algo que apagou um pouco da luz que anteriormente possuíam vivendo no silêncio das suas acções a mágoa que não conseguem esquecer.
Com uma direcção de fotografia de João Gabriel de Queiroz que toca na excelência capturando uma luz, cor e sombras que apenas podemos equiparar aos de um conto tradicional e popular que remetem o espectador para uma dimensão quase etérea, Beira-Mar prima ainda por uma sensível música original de Felipe Puperi e do próprio Matheus Almada confirmando a excelência de um novo cinema brasileiro e confirmando-se como uma dos mais fortes títulos da competição de longas-metragens desta edição do QueerLisboa.
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8 / 10
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