Mów mi Marianna de Karolina Bielawska é um documentário em formato de longa-metragem polaco em Competição na sua respectiva categoria na décima-nona edição do QueerLisboa - Festival Internacional de Cinema Queer que decorre no Cinema São Jorge até ao próximo sábado.
Marianna é uma mulher nos seus quarenta que atravessa uma delicada fase na sua vida. Com um processo em tribunal contra os pais que a impedem de mudar de identidade de género, com a sua família distante desde que assumiu a sua verdadeira identidade e com a proximidade da operação que irá, finalmente, fazer dela aquilo que sempre foi... uma mulher.
Mów mi Marianna acompanha assim estes largos instantes na vida desta mulher que luta pela afirmação do seu verdadeiro "eu" mesmo contra todos aqueles que sempre a haviam conhecido como homem e que a impedem de viver uma vida plena e livre assumindo aquilo que sente ser.
Ao contrário daquilo que muitas obras normalmente transmitem da vida passada daquele que retratam, este documentário centra-se quase na sua totalidade no conhecimento de Marianna, uma mulher que abdicou de tudo e de todos para conseguir encontrar a sua última réstia de esperança com uma vida na qual se sentia inserida com a sua verdadeira identidade. Uma vida longe de um sofrimento tido em silêncio que muito lentamente a consumia apenas para respeitar os padrões convencionais e pré-estabelecidos de que quem nasce homem será sempre homem. Abdicando dos pais, da mulher e das filhas e de todos aqueles com quem sempre havia privado, Marianna afasta-se de uma vida com todos os confortos e laços afectivos respeitando o seu ser, sujeitando-se assim a longos conflitos judiciais - dos quais apenas tomamos conhecimento não sendo o espectador alguma vez inserido no mesmo -, ao distanciamento de uma família incapaz de a ter tal como ela é e às demais humilhações públicas que o espectador conhece também através de um seu relato.
Quando tudo parecia encaminhado para que a identidade legal e física de Marianna fosse finalmente reconhecida, ela sofre um grave problema de saúde que a obriga a toda uma nova dinâmica e novo processo cognitivo como se uma vez mais partisse da "estaca zero" rumo a todo um novo caminho de árduas batalhas que teriam de ser suplantadas.
Nunca como uma mártir mas sim com uma extrema vontade de se afirmar enquanto ser digno da sua real identidade, Mów mi Marianna aborda uma etapa da sua vida onde a vemos tudo ter perdido... tudo ter ganho... e novamente perdido. Tudo em pouco mais de setenta minutos que nos brindam com um espírito livre capaz de viver contente com as limitações que lhe são colocadas ao seu redor, com as dolorosas lembranças de um passado vivido em silêncio e uma dor psicológica que estando presente não a condicionaram ao medo. Marianna sente-se - e faz-se sentir - como uma mulher forte, determinada e capaz de ultrapassar "mais um" obstáculo, cujo passado a moldou e fez tremer a sua confiança vendo (esperando) nos outros uma aceitação que só ela conseguirá ter e que agarra estes minutos do documentário em que participa como um legado que deixa para que testemunhemos o seu percurso.
Com um conjunto admirável de emotivos segmentos que fazem o espectador criar uma proximidade para com o seu percurso é, no entanto, o breve - muito breve - relato do "presente" que os seus colegas de trabalho lhe oferecem que se torna naquele que é eventualmente o mais empático de todo o documentário. Empático não pelo bárbaro acto tido mas sim pela forma como muito dignamente Marianna o ultrapassou vendo nele não a tal humilhação desejada mas sim a força necessária para sentir convictamente que a dignidade encontra-se no seu íntimo e não naquilo que os demais esperam que ela seja (ou fosse).
Longe de qualquer lágrima fácil ou tão pouco de qualquer tipo de comiseração, Mów mi Marianna assume-se como um documentário que relata tudo tal como é. Os entraves, as etapas ultrapassadas, as esperanças e os medos mas sobretudo os amores... aqueles que teve... aqueles que tem e sobretudo aquele que sente por si própria ao conseguir finalmente debater-se pela sua identidade.. pelo seu "eu" interior e que lhe era recusado por um papel "legal". Inteligente está também a forma encontrada para nos dar a conhecer o seu passado através de uma encenação teatral que (a) expõe momentos que nunca poderemos ver por não se encontrarem gravados, mas que retratam de forma cândida - pela sua aceitação - mas brutal, todo um conjunto de histórias e momentos que apenas Marianna saberá como os conseguiu ultrapassar.
Após a exibição do documentário, a realizadora esteve presente na sala para falar sobre a sua execução, sobre a primeira interacção com Marianna e o seu desejo de contar a sua história estando, no entanto, como uma peça quase invisível do mesmo. Como uma nota pessoal... ainda bem que Mów mi Marianna não foi feito denotando esta "invisibilidade" mas sim conferindo um rosto a uma alma grande o suficiente para conseguir contar com amena tranquilidade o seu presente, o que espera do seu futuro mas principalmente o seu passado não só através da já referida encenação teatral mas também através dos pequenos segmentos em vídeo que permitem ao espectador entrar naquela que foi a sua outra vida. Numa pequena e muito concisa palavra... Brilhante!
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9 / 10
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