quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Aparelho Voador a Baixa Altitude (2002)


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Aparelho Voador a Baixa Altitude de Solveig Nordlund (Portugal/Suécia) adapta a obra homónima de James G. Ballard ao cinema neste que é um conto centrado num futuro incerto onde os humanos são uma espécie em extinção. Distantes de um mundo onde a ordem ditatorial de um governo impõe quem pode ou não viver e no qual alguns países são "encerrados" por já não serem viáveis, Judite (Margarida Marinho) e André (Miguel Guilherme) refugiam-se num complexo hoteleiro semi-abandonado na esperança de salvar o seu filho por nascer, que suspeitam ser mutante, de uma morte certa.
Raramente num filme a premissa de "less is more" funcionou tão bem como neste Aparelho Voador a Baixa Altitude. A realizadora Solveig Nordlund juntamente com Jeanne Waltz e Colin Tucker adaptam o conto de ficção científica de Ballard criando um argumento onde todos os pequenos detalhes do espaço escolhido para a materialização da história funcionam como seus complementos entregando à referida atmosfera, uma estranha e fantasmagórica alma que transportam o espectador para esse "fim dos tempos" desejado.
Desde os instantes iniciais que o espectador sente viver num tempo futuro incerto onde o sistema, a ordem, o governo, as leis e a própria sobrevivência estão ameaçadas - ou vivem condicionadas - pelo acentuado decréscimo populacional fruto da impossibilidade de novos nascimentos e pelo constante desaparecimento daqueles que vão perecendo pela dita lei natural da vida. Encontramo-nos num tempo incerto onde já nenhuma criança nasce saudável ou, pelo menos, assim é informado o espectador. O ideal de bebé caucasiano, louro e de olhos azuis reflectido nos diversos cartazes mais ou menos decanos que ainda marcam as paredes, era a imagem de um sistema centrado nas teorias eugénicas que, em tempos, talvez tenham condicionado esse "nascimento" agora desejado. Nunca sabemos ao certo a origem da dita "deformação" que acompanhava o nascimento de alguns desses bebés. Desse modo, reside na imaginação do espectador sob que forma foi criado o ideal de "perfeição". Seria o tal bebé dos cartazes o ideal que se pretendia criar? Terá alguma experiência corrido mal e dado origem a essas mal formações? O apocalipse - ou holocausto - surge então pela mente do espectador que imagina a sua própria teoria e aquela que, em boa medida, se adequa à realidade que agora encontra... Uma população envelhecida, esquizofrénica, perdida num ideal de sistema totalitário que lhes confere uma qualquer ilusão de segurança contra essa ameaça porvir no corpo de bebés que são, agora, eliminados ao primeiro sinal de uma diferença e que levanta no espectador uma única questão... não será esta tentativa de eliminação dessa diferença a origem da própria esterelização e infertilidade da população e, dessa forma, não será esta a explicação para o desaparecimento da população mundial que se resume a escassos milhares por cada país que cai, lentamente, por se decretar a sua inviabilidade?
É portanto, neste contexto, que surge o casal "Judite" e "André". Dois dos últimos - senão mesmo os últimos - que tentam desafiar a estabelecida "ordem" e construir a família que sempre desejaram e que sempre lhes fora negada (sabemos que esta é a sétima tentativa do casal). Nos seus rostos reside uma qualquer opacidade que os priva da esperança que (eventualmente) terão sentido em tempos - se é que alguma vez a mesma lhes foi permitida - e o único desejo que os mantém "vivos" é a ideia de que desta vez irá resultar e que a sua família irá finalmente crescer. No entanto, é compreensível para o espectador que esta não passa de mais uma tentativa falhada e os próprios diálogos fazem compreender que o seu "monstro" (nunca identificável e apenas perceptível pela existência de uma "Carmen" (Rita Só) que leva o espectador a compreender aquilo que realmente todo o filme tenta abordar) terá vida curta. Ou não terá?!
A "Judite" de Margarida Marinho - personagem e actriz como forças motoras de uma humanidade desaparecida - é aquela na qual se nota a maior transformação psicológica ao longo dos quase oitenta minutos de duração desta longa-metragem. O espectador conhece-a ainda numa Lisboa não identificada no tempo, como a potencial mãe de uma criança ainda porvir... de uma gravidez que pouco se compreende fisicamente a uma viagem onde a sua esperança parece decrescer em ritmo proporcional àquele com que se manifesta a sua barriga, é através dos olhos da actriz que se entende o seu descrédito, medo do desconhecido que lhe é próximo e das incertezas que abalam todas as suas anteriores convicções sobre um futuro melhor... o tal que de punho cerrado em frente (qual saudação totalitária) assume o rosto de um regime que, também ele, decai dia após dia. Marinho, enigmática, feminina, esperançosa, desesperada, maternal e finalmente abnegada, compreende que é através da sua acção que o mundo e a humanidade - ou a sua nova forma - terão uma hipótese de resistir num universo e ordem diferentes. O mundo, daqueles que ainda resistem - compreende a sua "Judite" - terminou... há que dar lugar ao que de novo se irá impôr mas que permanece escondido nas sombras da ordem que resta.
Com um elenco de notáveis do cinema português como José Pinto e David Almeida aqui secundários ou Canto e Castro e Isabel de Castro como os gerentes do hotel decadente, Aparelho Voador a Baixa Altitude vive também de todo o ambiente de espaço abandonado e em ruínas de Tróia onde decorreram as filmagens, que conferem a toda a longa-metragem aquele desejado ambiente de espaço limite e para lá das fronteiras, onde ainda "algo" existe mas que ninguém controla ou, na realidade, pretende saber que existe. Uma espécie de far west onde tudo é possível e válido no qual residem aqueles que decidiram abandonar a sociedade, que vivem sob o seu jugo de regras mas que as adaptam às suas próprias conveniências e vontades. A lei, ainda que exista, aqui molda-se ao conjunto populacional que a abandonou... tal a esquizofrenia de um regime incapaz de se auto-sustentar mas que se exibe como controlador de toda a dita ordem... ainda que ilusória. A liberdade, ainda que exista a uma escala francamente reduzida, mais não é do que uma miragem daquilo que nós concebemos enquanto tal... talvez pela sua tomada enquanto uma garantia a tenha feito desaparecer sem que, na realidade, alguém tenha dado por ela.
Da direcção de fotografia de Acácio de Almeida que capta todos os momentos necessários para transformar todo o ambiente num espaço perdido nesses "limites fronteiriços" onde nada existe para lá do próprio nada à direcção musical de Johan Zachrisson que confere a Aparelho Voador a Baixa Altitude uma alma muito própria transformando-o num dos raros exemplares de ficção científica portugueses, Solveig Nordlund preenche o ecrã e o entusiasmo do espectador pela forma como filma os já referidos pequenos detalhes... nomeadamente o enigmático rasto fluorescente com que - espera o "Dr. Gould" (Rui Morisson) naquele que será provavelmente o alter ego do próprio Ballard -, quem ficar nesse "depois", consiga encontrar o seu caminho de volta a uma casa, até então, desconhecida.
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8 / 10
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