quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Estamos Todos Aqui (2018)

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Estamos Todos Aqui de Chico Santos e Rafael Mellim (Brasil) foi mais uma das curtas-metragens apresentadas neste último dia de exibição da Competição Oficial da vigésima-terceira edição do Queer Lisboa a decorrer até ao próximo Sábado no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Rosa, que nunca se sentiu Lucas o nome que lhe havia sido dado ao nascimento, fora expulsa de casa. Na emergência de construir a sua própria casa na Favela da Prainha, a expansão do maior porto da América Latina vê não só os seus como os sonhos de toda a comunidade ameaçados privando-a de um ideal de futuro.
A dupla de realizadores, que também escreveu o argumento desta curta-metragem que se assume desde o primeiro instante como breve demais para aquilo que nos poderá oferece, enquadra o espectador naquilo que é inegável... a extrema pobreza (social, cultural e económica) do espaço e da população que o habita. Longe de qualquer juízo de valor sobre os mesmos mas sim acentuado sobre as condições que a todos obrigaram a encontrar-se naquele local, é esse mesmo espectador que é imediatamente seduzido pelos comportamentos e rituais quase mecânicos que levam a nossa protagonista a uma busca incansável por um espaço e pelos materiais que a poderão permitir construir o seu novo lar num ambiente assumidamente agressivo.
"Rosa" - personagem docuficcionada - é uma jovem mulher numa transição desconhecida para o espectador. Na prática, essa mesma transição é apenas protagonista por ser (deduzimos) a razão pela qual ela necessita procurar pelo seu espaço sem se remeter para uma mendicidade ou prostituição quase forçadas, e encontrar assim um potencial lugar ao qual chame seu... e de lar. Um lar que lhe fora privado por uma família que compreendemos ter sido abusiva, injusta e que lhe renegou o direito a ser aquilo que sempre foi... uma mulher livre. Nesta medida, aquilo que o espectador compreende é todo o seu ambiente agora "natural" centrado em todo um conjunto de adversidades que lhe são forçadamente propostas e das quais terá de escapar se lhes quiser sobreviver.
Neste contexto, "Rosa" é uma mulher personagem de um espaço que joga desde o primeiro instante contra ela própria, onde reina o perigo, a miséria, as dificuldades e sobretudo todo um conjunto de impossibilidades que a privam de viver a sua vida tal como ela deveria ser... livre. O espaço apresentado pelos realizadores não poderia ser mais adverso... todo um bairro (favela) onde reina a miséria e o empobrecimento. Habitações precárias erguidas por entre o lixo e os detritos esquecidos pelo sem fim de construções que crescem ao seu redor e "na outra margem" das suas possibilidades, fazendo criar famílias que estão, em todas as frentes, num limiar de vida digna e que para sobreviver apenas está garantido pelo recurso à ilegalidade.
É, neste mesmo meio, que "Rosa" tem não só de sobreviver como também lutar e insurgir-se contra as ameaças que se sucedem quando o próprio local está ameaçado pela expansão de um novo motor económico que irá colocar em causa toda a sua (nova) forma de sobrevivência. Atenta, lutadora e agora despertada para a realidade de toda a sua nova condição, "Rosa" terá de se insurgir contra as ameaças ou perder-se e morrer face à incerteza a que a remetem e que a espera sem qualquer piedade.
Para lá de um atento olhar sobre a transição de uma jovem mulher, Estamos Todos Aqui é um intenso relato sobre a sobrevivência humana. Sobrevivência essa que se pode assumir física, psicológica, económica, cultural ou sob uma qualquer outra forma que ameace a dignidade humana e que mais ou menos moderadamente catapulta todos os seus intervenientes a uma luta sem fim pelo seu espaço e sobretudo pela sua existência. Estamos Todos Aqui poderia, dessa forma, ser a interessante pergunta colocada ao "outro" com o fim último de compreender quem tem mais direito sobre o "espaço"... "eu"... "tu"... "o outro"?! Serão umas formas de existência mais válidas que as outras? Terei "eu" mais direito ao espaço do que "tu"? Será a minha existência mais válida do que a "tua"?
Vivida de forma intensa e quase sempre a atingir um clímax, "Rosa" e o seu grito de revolta que a obriga a incorporar esse Estamos Todos Aqui como o seu lema de vida constituíram-se como um dos mais interessantes filmes curtos a passar este ano pelo Queer Lisboa e um tubo de ensaio para aquilo que poderia ser uma história mais longa e, sem qualquer ponta de filosofia, um interessante relato sobre quanto tempo dura ou resiste a luta por essa dignidade tantas vezes perdida.
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8 / 10
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