Ramiro de Manuel Mozos (Portugal) é a mais recente longa-metragem do realizador de ...Quando Troveja (1999) e 4 Copas (2008) e revela a história de Ramiro (António Nortágua), dono de uma livraria alfarrabista que sofre de um bloqueio artístico que o impede de terminar um novo livro. Conformado com uma existência onde reina a frustração, Ramiro vive acompanhado pelo seu cão, por um conjunto de vizinhos e amigos que vêem nele um porto seguro mas que, lentamente, também esperam - dele e para si - uma nova vida ao virar da esquina.
Existe algo nas personagens dos contos de Manuel Mozos que transcende aquela que poderia ser uma vida normal. Das já referidas longas-metragens à mais recente curta Cinzas e Brasas (2015) que obriga o espectador a observar existências mundanas, por vezes até mesmo perdidas, que deambulam por um mundo que ou não correspondeu às expectativas que dele tinham ou que, por sua vez, granjeou oportunidades a todos os demais. "Ramiro" não é disso excepção... Fiel amigo de "José" (América Silva), figura sentimental e amorosa para "Isabel" (Cristina Carvalhal) e "Patrícia" (Sofia Marques) e paternal para "Daniela" (Madalena Almeida) ou mesmo um filho substituto para "Amélia" (Fernanda Neves), o alfarrabista parece cuidar involuntariamente da vida de todos menos da sua. Por vezes saturado e quase sempre desencantado, são pequenos prazeres aos quais pouca "vida" dá que parecem fazê-lo viver dia após dia sem que, no entanto, nenhum deles pareça conferir-lhe grande motivo de felicidade enquanto outros, seguramente menos dotados que ele, aparentam viver vidas mais preenchidas ou até mesmo desafogadas.
A vida de "Ramiro" complica-se aos poucos, tais as "regalias" que a mesma lhe confere quando decide preocupar-se não apenas consigo mas com aquilo que o rodeia, e por entre a tutela de uma jovem que não passa de sua vizinha à descoberta de que o amor pode residir bem mais perto do que imaginaria ou mesmo que a confiança e amizade que nele depositam deveria ser motivo suficiente para pensar na vida com alguma maior alegria, a personagem à qual António Mortágua confere uma vida e pulsante vida (mesmo com toda a sua calma e tranquilidade) acaba por descobrir involuntariamente, e sem se dar conta, aquilo que tanto ambiciona... ter uma razão para a sua existência.
Sempre perdido nos seus pensamentos, nos problemas dos outros, na compreensão de que aquilo que desejaria não está a um fácil alcance ou mesmo na possibilidade de manifestar sentimentos ou emoções que compreende mas não deseja, "Ramiro" é um homem que não querendo envolver-se na vida que o rodeia, faz dela parte movimentando silenciosamente tudo e todos os que o rodeiam... Da necessidade da sua atenção aos sentimentos amorosos, da amizade à cumplicidade, da aceitação de que ele é aquilo que todos os demais precisam - pai, amigo, vizinho, amante, confidente (...) - "Ramiro" é no fundo uma parte integrante e fundamental do desenvolvimento dos demais e, dessa forma, também de si... compreendendo e aceitando que os demais só existem com uma qualquer ordem social porque ele lá está... preparado para os amparar mesmo com a sua marcada insatisfação.
As vidas banais de um bairro são aqui retratadas com uma desarmante nostalgia que levam o espectador primeiro a olhar para esta história com uma certa saturação identificando-se, talvez sem perceber, com "Ramiro" para depois compreender que aquelas ligações estabelecidas exibem tanto de melodramático como de cómico, de irreal como também de humano percebendo que, por vezes, alguns sonhos não se concretizam mas que, no entanto, existe toda uma vida para lá daquilo que em tempos imaginámos e que, por esse motivo, não deixámos de viver. Tal como "Ramiro", o amargo cinismo com que tantas vezes olhamos para o exterior é repentinamente desarmado dando lugar a uma certa réstia de esperança que poderá ajudar a ver (melhor) aquilo que o dia de "amanhã" poderá (ou não) nos proporcionar. Nada poderá ser tão amargo... e se fôr... será que isso nos condiciona a olhar para quem nos rodeia? Ou mais... olhar para aquilo que influenciamos esses que nos rodeiam?!
António Mortágua é dono de uma inesperada vitalidade que nem mesmo a sua pausada e aparentemente tranquila personagem ofusca. Exibe um constante silêncio que, no entanto, é capaz de esconder não só todas as mágoas pessoais do mundo como principalmente todos os mais perigosos segredos que apenas uma mente estruturada conseguiria reter acompanhado por todo um conjunto de notáveis secundários entre os quais se destaca, para lá dos anteriormente mencionados, uma igualmente intensa composição de Vítor Correia como "Alfredo" a quem o destino também não sorriu e que, independentemente do crime macabro que possa ter cometido exibe, também ele, toda uma inesperada tranquilidade como reflexo de alguém a quem os sonhos também não sorriram.
Magnífico o argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo capaz de retratar todos os sonhos e desejos de um homem que, por não os cumprir, sente toda a frustração, desilusão e solidão do mundo... mesmo que a seu lado possa encontrar tudo o que necessita para se sentir a pessoa mais feliz do mesmo. Ramiro é assim uma pequena pérola que irá seguramente deixar o espectador com um inesperado sentimento de uma nostalgia... por vezes boa... outras tantas menos positiva... mas que de forma notável nos deixa levar para a compreensão de que mesmo quando tudo não surge como se espera... existe muito mais ao nosso lado para o qual tantas vezes não depositamos a devida importância.
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