Deus Branco de Kornél Mundruczó é uma longa-metragem de ficção húngara vencedora da secção Un Certain Regard e da Palm Dog do Festival Internacional de Cinema de Cannes em 2014 com estreia marcada para este mês em Portugal.
Lili (Zsófia Psotta) tem treze anos e tem de passar uns dias em casa do pai. Ao mudar-se para a sua casa, Lili faz-se acompanhar de Hagen, o cão que recolheu e que nem o pai nem a vizinhança do prédio estão preparados para ter por perto.
Quando Dániel (Sándor Zsótér) decide que a filha tem de livrar-se do cão, estava longe de imaginar as consequências que a sua decisão iria desencadear.
"Tudo o que é terrível necessita do nosso amor". É com esta frase de Rainer Maria Rilke que Fehér Isten se inicia pressupondo que o espectador está perante uma história onde a maldade - do cão - será uma eventualidade no decorrer desta história. No entanto, aquilo que o espectador se irá questionar é se este é realmente a fonte desse tal "mal" ou se, por sua vez, aquele que é dotado da capacidade de o ter não será, na realidade, o animal Homem.
Muncdruczó em colaboração com Viktória Petrányi e Kata Wéber escrevem assim um argumento não só repleto de uma simbologia própria de uma história de (des)evolução do Homem e do Animal como também uma que está consciente de que esta mudança apenas poderá original um caos que é, de certa forma, premeditado e onde poucos são os elementos que podem evitar uma catástrofe maior.
As relações humanas aqui retratadas são, elas próprias, desumanizadas. Uma mãe distante da relação que mantém com a sua agora adolescente filha e que prefere dedicar-se a uma nova relação deixando-a para trás com um pai ausente. Uma jovem inadaptada socialmente de um conjunto de colegas de escola (de música) que apenas vêem nela a "miúda" com quem têm aulas e que querem distante dos demais eventos sociais em que participam. Jovem esta que, por sua vez, tem apenas em "Hagen" - o cão - o único fiel e dedicado amigo mas que se vê forçada a abandonar por um pai que não quer pagar multas pela sua posse. A vizinha - numa clara representação de todo um conjunto de outros seres - que por maldade e desdém denúncia uma agressão animal que nunca ocorreu e finalmente a única grande dinâmica estabelecida entre pai e filha é o presente abandono de "Hagen" que ela não soube ou conseguiu defender por ser uma voz não escutada.
Pelo caminho temos uma história de amadurecimento de "Lili" e a falta dele por parte dos adultos que se tornam pessoas secas, desacreditadas e desinteressantes mas que se afirmam conhecedores e donos de uma razão inexistente. Desacreditados ou até mesmo desiludidos com as suas vidas ocas e desinteressantes - qual autómatos parecem - todos eles se vêem impôr uma razão e uma certeza que apenas colmata as suas dificuldades de aceitação para com a vida que têm. Destroem (in)voluntariamente todos os pequenos sinais de humanização e dedicação que presenciam de "Lili" e como resultado de uma sua falta de admissão ela é - para eles - um elemento inadaptado e à margem dos seus parâmetros.
"Como pode um professor falar sobre o amor quando não tem coração", pergunta "Lili" ao seu professor de música percebendo que a sua desumanização para com as carências de um animal desprotegido que prefere ver fora da sua aula ao invés de o auxiliar e proteger de uma rua onde poderá encontrar a morte certa. Num perfeito ensaio sobre a desumanização, Fehér Isten relata-nos então a história da relação entre o Homem - "Lili" - e o Animal - "Hagen" - que encontram o conforto e a traição em si próprios. O primeiro com a proximidade natural que os une e a segunda com a separação a que se vêem forçados. Numa evidente semelhança, tanto "Lili" como "Hagen" encontram em si próprios o único espaço seguro que têm... Ela ausente de uma relação familiar estável, de amigos ou até mesmo de um ambiente escolar perfeito e ele um animal abandonado fruto das indiferenças de uma sociedade que aparenta apenas querer perfeição, vêem na sua amizade o único conforto que possuem e que é abalado com a sua separação e com os percursos injustos e socialmente violentos a que são sujeitos. Poderá então o amor de "Lili" salvar um destruído "Hagen"? Esta é assim a pergunta que mantém o espectador em suspenso até ao último instante.
A segunda metade de Fehér Isten entra deliberadamente no campo do imaginário, de uma vingança (justa) contra o mal voluntário que "Hagen" decide a certo momento fazer aplicar. Sendo visados todos aqueles que atentaram contra a sua segurança, este animal lidera uma matilha que percorre as ruas da cidade sem dó nem piedade para com aqueles que o maltrataram e levaram a uma vida desumana - interessante esta escolha de palavra - e pretende fazer a sua própria limpeza "racial" numa verdadeira luta de Homem vs. Animal.
Toda a simbologia encontra a sua exaltação máxima a partir deste momento em que "Hagen" parece dotado de uma personalidade forte e justiceira mas, ao mesmo tempo, vingativa e sem perdão, pensada como se dotado de uma consciência e de um padrão de moral e valores. Simbologia essa que é levada ao extremo com a solução encontrada por "Lili" e a sua própria exaltação do conto dos Irmãos Grimm do Flaustista de Hamelin que transporta os ratos para fora de uma cidade infestada hipnotizando-os com o som da sua música, e que aqui se aplica à sedução também ela musical feita para "Hagen" que reconhece finalmente o único amor que alguma vez possuiu - o do "Lili".
Curiosa é ainda a reacção final da jovem que num acto de perdão e penitência católicos se deita do chão frente aos cães perseguidos e maltratados e que nos poderá fazer igualmente pensar sobre os conflitos existentes numa sociedade húngara actual onde muitos comportamentos que vitimiza uma população desprotegida e socialmente frágil às mãos dos demais que aparentam ter um medo irracional daqueles que pouco têm - o mesmo medo que é aqui expresso para com os cães que percorrem as ruas à procura do seu espaço e da sua justiça.
No final dois sentidos pensamentos: o primeiro prende-se com a possível existência de uma paz - espiritual e social - entre vítima e agressor. Será ela possível depois de um conjunto de maus tratos que dificilmente se esquecerão? O segundo pensamento será sobre quem é o verdadeiro selvagem... Aqueles que denotam comportamentos violentos ou os demais que os atormentaram ao ponto de ser esta a única solução possível no seu conjunto de comportamentos sociais?
Ainda que a jovem Zsófia Psotta tenha uma interpretação forte e sólida, é no entanto o actor-cão - vencedor da Palm Dog em Cannes - que dinamiza a atenção do espectador levando-o a querer acompanhar todos os seus momentos e tormentos, percebendo assim aquilo que o "fez" tal como se apresenta, e dinâmicos são ainda a música original de Asher Goldschmidt e a direcção de fotografia de Marcell Rév que conferem às ruas de Budapeste um lado sombrio apenas reconhecido em épocas mais conturbadas da História.
.
.
8 / 10
.
Sem comentários:
Enviar um comentário