quarta-feira, 13 de maio de 2015

La Ropavejera (2014)

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La Ropavejera de Nacho Ruipérez é uma curta-metragem espanhola de ficção que esteve presente na secção Nacional da sexta edição do Piélagos en Corto - Festival Internacional de Cortometrajes de Ficción que decorreu na Cantábria, em Espanha até ao passado dia 9 de Maio.
Encerrados numa velha mansão, nove crianças são vítimas de uma gélida mulher que gosta de ser chamada de Mãe (Ana Torrent). Ao seu lado tem Angelita (Marina Alegre), uma adolescente que castiga as outras crianças como forma de manter uma ordem para o bom funcionamento da casa. No entanto, a vida destas crianças ganha toda uma nova perspectiva com a chegada de Teresita (Álex Viciano) que irá impôr-se contra os maus tratos que sofrem naquela casa.
Há muito tempo que não assistia a um filme curto que tivesse ao longo da sua acção um conjunto de elementos que se aproximam muito de perto da excelência e da perfeição. Nacho Ruipérez e o seu La Ropavejera chegaram e conquistaram esse patamar. O realizador e argumentista criam todo um ambiente que trabalha para apelar a que o espectador se sinta desde o primeiro instante como um intruso que condena todos os pequenos espaços e motivos da existência daquela casa onde rapidamente se sente preso. Esta casa - que nos leva ao início do século passado - é pela sua simples existência um antro no qual percebemos tudo ser anti-natura.
Num perfeito estilo gótico e sombrio, La Ropavejera insere o espectador naquele que é supostamente um lar de acolhimento de crianças mas que, pelo seu mais que evidente aspecto, o faz entender que aquelas crianças estão ali para tudo menos achar que aquela casa é um "lar". Tudo é frio, denso e francamente sufocante, e o claro mau aspecto que as crianças exibem apenas contrasta com o faustoso luxo com que "Madre" (Torrent) se apresentam.
À medida que nos embrenhamos pelos sombrios corredores daquela casa percebemos que a exploração infantil é o moto do seu desenvolvimento. Ali todos têm de trabalhar para sobreviver e esta vivência mais não é do que retirada não só do trabalho físico mas principalmente da exploração psicológica da qual todos são vítimas. Claramente explorados para um qualquer propósito tido como "maior", estas crianças servem para todo o tipo de trabalhos pesados desde lavar o chão, limpar o pó ou todo e qualquer outro serviço que contribuísse para o "bom funcionamento" da casa. Estas crianças são ainda alvo de abusos sexuais que não sendo totalmente explorados no decorrer de La Ropavejera são, no entanto, perceptíveis o suficiente para sabermos que existem. Àquela casa recorrem todo o tipo de homens que no silêncio e anonimato que as quatro paredes lhes conferem, usam e abusam da inocência perdida das crianças que para além de escravos sexuais são ainda utilizados como cobaias para sacrifícios em nome uma eterna juventude perdida, do fim de um envelhecimento precoce ou até mesmo utilizados para a prevenção de doenças como a tuberculose. É neste exacto momento que percebemos que nos encontramos perante uma história que cruza Salò o le 120 Giornate di Sodoma, de Pier Paolo Pasolini com o mais recente Eyes Wide Shut, de Stanley Kubrick numa história de perversão, pedofilia, homicídio e degeneração que tem o cuidado de nos esclarecer que é livremente inspirada num caso real que abalou a Barcelona dos idos anos 10 do século XX onde a primeira mulher serial killer espanhola mantinha reféns várias crianças que entregava para abusos físicos e psicológicos às mãos de influentes personalidades da cidade. Em nome do dinheiro tudo valia e para a sua manutenção todos eram dispensáveis a partir do momento em que não eram cumpridas as vontades de quem detinha o poder.
Para lá dos hediondos actos que as quatro paredes esconderam, La Ropavejera tem ainda toda uma outra leitura sobre as acções que passa pela perda da inocência, pelo rapto, pela morte, pelos abusos físicos e igualmente dramáticos os psicológicos que lançavam sobre crianças que desde jovem idade tiveram de lidar com abuso sexual, com o aborto, com a morte como sendo vivências normais e até desejadas apenas como forma de saciar pseudo-necessidades criadas por um conjunto de pessoas que não viam meios para alcançar os seus fins tendo apenas como base o seu poder social, político e económico para dizer "sim, eu posso". La Ropavejera obriga o espectador a questionar também o início deste flagelo... Terá ele começado com elaborados raptos ou teria a miséria sentida na altura em certos meios levados famílias a abdicar dos seus descendentes para poder sobreviver à fome e à doença? Seriam - na altura - estes "motivos" justificações para ceder às próprias necessidades?
La Ropavejera cruza um vaiado grupo de estilos cinematográficos entregando ao espectador a capacidade de se "inserir" naquele com que tem mais familiaridade. Se por um lado estamos perante um filme dramático que explora a vertente mais sentimental daquelas vítimas, não é menos verdade que facilmente poderemos encontrar aqui elementos de terror gótico, do género fantástico, de filme histórico e até mesmo de cinema social se considerarmos que tudo é baseado em acontecimentos reais e que são seguramente desconhecidos da maioria dos espectadores que poderão estar menos informados. É esta imensa mescla cinematográfica - que poderia facilmente cair num aglomerado de momentos desconexos - que transforma esta curta-metragem não só num dos filmes curtos mais destacados do último ano como num que servirá como referência futura da extrema qualidade fílmica de toda uma nova geração de realizadores espanhóis que proliferam com histórias inovadoras, vanguardistas e extremamente bem dirigidas. Que a carreira de Ruipérez seja longa é um desejo que tenho, mas que La Ropavejera será uma das suas obras-primas não tenho a menor das dúvidas.
De vítima em Tesis, de Alejandro Amenábar a "rosto do mal" em La Ropavejera, Ana Torrent apresenta mais uma inspirada interpretação com a qual o espectador apenas pode empatizar pela sua excelência mas nunca por aquilo que representa. Com um look gótico de uma aparência gélida e indiferente - num brilhante registo de caracterização de uma magnífica Ana María Balsera - Torrent assume uma presença fantasmagórica desde o primeiro instante. Percorre aqueles corredores como se fosse a sua própria sombra mas sempre alerta sobre quem está, onde está e de quem a rodeia. Ela inconscientemente assume a forma de todas as paredes daquela casa sendo para além de sua dona um dos objectos que a compõe. No fundo, uma consciência do mal que ali decorre... o relato vivo das acções praticadas.
Para lá do apontamento positivo que merecem todos os jovens actores que funcionam individualmente como parte de um todo que se tenta opôr à corrente de mal que ali domina, é impensável falar desta curta-metragem sem destacar toda a excelência técnica que a compõe desde o guarda-roupa à direcção artística e há já referida caracterização que funcionam como um elemento em uníssono pois são eles que muito contribuem não só para o estilo de filme de época como principalmente para o aspecto gótico que lhe é conferido, sem esquecer a magnífica direcção de fotografia de Gabriel Guerra que confere a todo o espaço um conjunto de sombras e tonalidades escuras que acentuam o aspecto de putrefacção e morte que se faz sentir quase inconscientemente e claro a extraordinária música original sob a direcção de Arnau Bataller que entregam a La Ropavejera toda a necessária carga negativa típica da mescla de géneros já referidos.
O que falta a La Ropavejera? Absolutamente nada... Bom, talvez o Goya!
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10 / 10
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