sábado, 2 de setembro de 2017

Verão Danado (2017)

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Verão Danado de Pedro Cabeleira é uma longa-metragem portuguesa vencedora de uma Menção Honorsa na última edição do Festival Internacional de Cinema de Locarno cujo argumento, também da autoria do realizador, relata um período na vida de Chico (Pedro Marujo). Das suas tardes de lazer, drogas, desencontros amorosos e muita música tendo como palco a cidade de Lisboa, Chico (re)encontra alguns dos rostos do passado e do presente enquanto vive uma aparente descontracção para com o mundo "do outro lado".
Depois da curta-metragem Estranhamento (2013), Pedro Cabeleira regressa à direcção agora de uma longa-metragem (a sua primeira), numa história que, não querendo assumir-se como o conto de uma geração, lentamente se assume como um marco da mesma ou, neste caso, um retrato daqueles nascidos na já ida década de '90. Do passado de "Chico" o espectador pouco conhece. Aliás, nem interessa para lá de um breve vislumbre sobre os seus dias de uma infância já perdida na "terra" que abandonou para vir estudar para Lisboa. Das tardes passadas com os avós que repete anualmente sempre que chega mais um Verão a um certo ambiente de idílica despreocupação vivida e sentida em Lisboa, "Chico" é aquilo que sempre quis ser ou, por outro lado, aquilo que as oportunidades lhe permitiram ser. E é nesta Lisboa que conhece e que agora é também sua que "Chico" se afirma e perde num caminho sem rumo... talvez por não existir... talvez por não ser procurado ou, até mesmo, por já não querer por ele procurar.
"Chico" passa pelos dias numa aparente rotina possibilidade pela ausência de uma qualquer outra. Se uns poucos - talvez afortunados - se podem preocupar com a firmação de um primeiro trabalho pós período estudantil ou até mesmo pensar naquela carreira para a qual dedicaram toda uma vida de estudo, "Chico" parece já ter ultrapassado a fase do envio sem fim de curriculums que em nada se traduzem para lá da desesperança que aumenta a cada dia que passa. Aumenta ao ponto de se tornar irrelevante, indiferente e naquela única certeza que o assola e a tantas como ele. Afinal, num país aparentemente desinteressado daqueles que tentaram um dia contribuir para o seu melhor nível de vida e que foram esquecidos tal como todas aquelas vãs promessas que foram em tempos feitas... de que serve pensar no "estudem que terão um emprego melhor" quando, na realidade, ou já ninguém se lembra de o ter dito? Porque concentrar todo um esforço diário em algo que, inconscientemente, já se compreendeu não (ir) existir?!
Dos jogos de futebol entre amigos aos ocasionais encontros anónimos em que um grupo de (mais ou menos) estranhos se reúne e come como que uma celebração destes tempos anónimos onde a natural interacção entre as pessoas parece cada vez mais fluir desse mesmo anonimato, "Chico" deambula pela cidade, por esses encontros fortuitos e ocasionais que, na realidade, em pouco ou mesmo nada irão resultar. Das relações ocasionais que apenas servem para se sentir vivo e estimular os seus dotes enquanto ser humano ainda vivo àquelas que estabelece apenas como escape para a sua sexualidade de jovem adulto, "Chico" fica tão indiferente ao (seu) mundo como aquela indiferença que já compreendeu dele receber. Afinal, valerá a pena lutar seja pelo que fôr?!
As (suas) amizades tão efémeras e de circunstância como qualquer outra relação que (se) estabelece neste século XXI, fazem de "Chico" e de todos os seus "amigos" que mais não são do que meros conhecidos, estranhos dos quais pouco ou nada se sabe. O espectador compreende, pelas próprias dinâmicas que são estabelecidas entre eles, que todos se conhecem por já se terem cruzado nalgum momento das suas vidas... tenha sido na universidade, numa qualquer relação de momento, num bar, numa discoteca ou mesmo através de amigos de amigos, todos sabem quem são sem, no entanto, saberem como e onde estão na vida. Por vontade, escolha ou mero desinteresse que é, no fundo, transversal a todas as suas actividades, não importa ou interessa saber mais do que o circunstancial... não interessam os laços, as ligações, as amizades ou o conhecimento do "outro"... tudo deixou de interessar para lá daquilo que satisfaz o momento... o instante... e o imediato.
Dos jantares cujo propósito é o "conhecer pessoas" às festas onde dançam ao som da "Canção do Engate" de António Variações como hino e ode à liberdade mais ou menos escolhida de uma geração sem um rumo aparente - e isto não como um julgamento sobre e para com a mesma - "Chico" e "Maria" (Lia Carvalho) seduzem-se, estimulam-se e satisfazem (uma vez mais) os seus ímpetos sexuais e a sua necessidade de, por breves momentos, estar junto a "alguém"... sem consequências, sem esperanças e até mesmo sem um sentimento maior que os transporte para um mesmo caminho num momento que facilmente identificaríamos como aquele de sedução tido entre "Charlotte" e "Bob" de Scarlett Johansson e Bill Murray em Lost in Translation (2003) quando, perdidos numa cidade que lhes era estranha, a ela se tentam adaptar enquanto se (re)conhecem e identificam como seres que esperam voltar a sentir lgo... por alguém... pelo "outro".
Dos encontros ocasionais aos desencontros confirmados. As personagens passam por Verão Danado de forma fugaz ou sem grande consequência para o argumento ou para a continuidade da história. Todas elas têm a sua importância confirmada mas nenhuma permanece por muito tempo... no fundo como tantas outras relações sentimentais e de amizade que qualquer um de nós (re)conhece na realidade individual de cada um. "Chico" navega por Lisboa numa aparente despreocupação para com o seu futuro... As entrevistas são encaradas como "mais um" momento do qual se sabe pouco sair rentabilizado... para quê preocupar com um potencial trabalho quando já se sabe (ou espera) de antemão não ir resultar em nada? Sem grandes objectivos, propósitos ou preocupações, a certa altura apenas importa o social, as festas, os encontros e conhecer pessoas ainda que dali nenhuma delas poderá resultar em algo que possa criar raízes, Formam-se apenas ocasiões que facultam um necessitado alheamento da realidade tal como ela é, deixando apenas ter importância "o momento" que se espera descontraído, descomprometido e desinibido. Nas festas, tal como em todas as demais circunstâncias da (sua) vida ou nas quais marca presença, ele não é aquilo que aparenta ser opondo o que esperava e queria àquilo que tem e "usa" para (sobre)viver num mundo sem qualquer objectivo. Mas, no fundo, Verão Danado pode ser uma reflexão sobre as aparências, sobre a solidão escolhida ou forçada, sobre a perda de desejos de longo prazo celebrando o imediato... "ninguém é ou não é, aquilo que aparenta ou não ser" como se escuta algures ou, como podemos encontrar na "Canção do Engate" que escutamos, "tu estás livre e eu estou livre" (..) "tu estás só e eu mais só estou" (...) "vem que o amor é o momento em que eu me dou em que te dás" (...) "Tu que buscas companhia, E eu que busco quem quiser"... Uma celebração a essa solidão nem sempre desejada mas que um dia chegou, que se abraçou e confirmou como a opção viável mas que, por breves instantes ao longo desse Verão se pensou como poderia ser quebrada... mas pelo descrédito do "outro" com quem se pensou poder avançar... se remeteu - "Chico" - à mesma indiferença e apatia que reinam nestas relações de circunstância. Tudo (o momento) em Verão Danado se relativiza e esse futuro que há-de chegar é francamente indiferente.
Independentemente de se querer ou não criar uma obra que seja o símbolo de uma geração - e a seu tempo Verão Danado será uma delas -, a longa-metragem de Pedro Cabeleira assume-se naturalmente como uma delas. Não existe nada de redutor neste "carimbo". Pelo contrário! Verão Danado está, tal como O Sítio Onde as Raposas Dizem Boa Noite (2014), de Rui Esperança e Uma Rapariga da sua Idade (2015), de Márcio Laranjeira como um desses filmes. A implícita mensagem sobre a perda de objectivos, ou a sua total isenção ou desconhecimento, sobre gerações de jovens perdidos entre sonhos adiados, perdidos ou ainda por descobrir, amores interrompidos, amores nunca confirmados e até uma apatia sentimental e sexual que a todos afasta de uma vida em tempos sonhada confirma-se nestas obras que reflectem um espaço, um tempo e, como já referido, uma geração. Se aqueles que nos 30's se vêem cada vez mais concentrados na manutenção de um trabalho (quando existe) e distantes de relações sentimentais e afectivas, da parentalidade ou até mesmo da tal casa que sempre se sonhou ter, outros nos 20's distanciam-se do compromisso, da relação, do trabalho que raramente existe e da busca do sonho que, em muitos casos, nem sequer chegou a existir.
O segredo para a interacção com tudo ao seu redor - de "Chico" como personagem principal - reside na abstracção criada, aliás, pela magnífica direcção de fotografia da jovem Leonor Teles - também responsável pelo já mencionado O Sítio Onde as Raposas Dizem Boa Noite - que opõe personagens que privam no mesmo espaço sem na realidade interagirem directamente. Os corpos estão lá mas as almas vagueiam por essa abstracção que comete o erro ou o desejado, o impensado e até o sentido em segredo e Pedro Marujo com o seu "Chico", brilhante nesta abstracção pessoal e social, é a involuntária alma de uma história que persiste e insiste em esconder momentos, sentimentos, sonhos, desejos e até banalidades pela celebração do impessoal criando a mentalidade de que se pode estar em qualquer lugar sem que, na realidade, lá se esteja de facto.
Para lá de uma história que parece, ao primeiro e desarmado visionamento, criada para expôr o "nada", Verão Danado surpreende por contar tanto possibilitando a aproximação e compreensão de um desespero silenciosamente vivido e tido (por alguns) como a única certeza ou conforto que uma vida pode conferir. Num país que arriscasse mais compreender os seus e em que ver cinema falado em português fosse mais do que ver umas quantas comédias sem graça no cinema, Verão Danado seria celebrado como um dos filmes do ano... da década e da tal geração que pretende (ou não) retratar.
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"One night while walking home,
I could not remember where I had been,
I found myself all alone,
With the stain of sadness on my jeans."
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9 / 10
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