O Conto dos Contos de Matteo Garrone é uma longa-metragem italiana com doze nomeações aos David di Donatello da Academia Italiana de Cinema e o filme escolhido para a abertura da Festa do Cinema Italiano que hoje começa no Cinema São Jorge, em Lisboa.
Com três histórias paralelas, esta longa-metragem começa por nos apresentar a história da Raínha de Longtrellis (Salma Hayek), uma mulher orgulhosa e infeliz por não conseguir dar um herdeiro ao trono e capaz de tudo - mesmo de sacrificar a morte do Rei (John C. Reilly) - para ver o seu desejo concretizado.
Paralelamente temos ainda a história do Rei de Highhills (Toby Jones), incapaz de amar a sua filha Violet (Bebe Cave) e que entrega a respectiva mão num jogo de sorte e de azar, mas que dedica toda a sua dedicação a uma pulga gigante que mantém secretamente.
Finalmente temos ainda a história do Rei de Strongcliff (Vincent Cassel), um homem apenas concentrado nas suas paixões e prazeres sexuais fugazes, que desdenha aqueles que mantém por perto apenas para se deixar apaixonar por quem outrora rejeitara.
Debutante no Festival Internacional de Cinema de Cannes em 2015, Il Racconto dei Racconti - a mais recente obra do realizador de Gomorra (2008) e Reality (2012) - distancia o espectador das referidas histórias contemporâneas para inseri-lo num mundo de fantasia e do fantástico onde o desamor, a vingança e o sacrifício extremo são os motes comuns a todos os contos.
A primeira história que nos é apresentada revela o reino de Longtrellis governado por um Rei dedicado a uma Raínha que se sente impotente e desamada. Tudo o que está à sua volta são meros prazeres que não aprecia enquanto todos os demais parecem conseguir viver uma vida feliz que ela despreza. Os seus desejos mais profundos, presos com assuntos de uma maternidade que não consegue ver concretizada, ganham corpo quando o Rei enceta uma demanda para matar um dragão marinho possibilitando à Raínha o seu fértil coração. Só assim os seus desejos serão concretizados mas reclamando a vida do seu "herói". Com uma gravidez de apenas um dia que será partilhada com outra mulher, a sua felicidade continua a ser ameaçada pela dedicação do seu filho ao seu... "gémeo", facto que a levará a exigir a concretização de mais um capricho e, como tal, mais uma morte inesperada. Tudo se paga no reino onde os desejos são facilmente realizados.
Em Highhills temos uma "Princesa Violet" mal-amada por um pai (Toby Jones) que apenas tem olhos - e coração - para um invulgar animal de estimação que dedicadamente alimenta e esconde do mundo à sua volta. Quase como um fetiche oculto, este Rei ignora tudo e todos - mesmo a sua filha e a sua vontade de casar e ver o mundo - encetando uma improvável tarefa que julga ser impossível de ultrapassar. Mas nos mundos de fantasia, todos os impossíveis são possíveis. Assim, de vulnerável princesa a destemida guerreira que exige ser levada a sério, "Violet" é eventualmente a personagem com a transformação mais radical ao cosneguir destronar o mais inesperado dos noivos.
Já no reino de Strongcliff, onde a frivolidade e o banal co-existem e primam como valores maiores, todos aqueles que perdem a beleza e o vigor da juventude são ignorados por um rei (Cassel) que deseja gozar todos os seus prazeres carnais. É a renúncia e repulsa para com uma "Dora" (Hayley Carmichael) envelhecida e repleta das marcas do tempo que a faz, por estranhos caminhos, dar continuidade a um plano de poder um dia ser uma "Dora"... bem mais nova (Stacy Martin).
É no seio destes inuendos e planos maquiavélicos de que vivem os futuros monarcas. Aqueles que nascidos e criados no seio de ambientes inóspitos e que de uma ou outra forma os marcaram como naturalmente (in)desejados irão - poderão vir a ser... - os veículos de uma bondade transformadora não só nas suas vidas como também nos reinos que mais tarde chefiarão. Mas é este processo que se torna avassalador em Il Racconto dei Racconti na medida em que nenhum deles conseguiu viver uma infância ou juventude tranquila... Se uns foram indesejados por aqueles que os fizeram vir ao mundo, outros foram amados de uma forma que os impedia de conhecer livremente o que os rodeava condenando a sua existência a um espaço melancólico e triste... a uma existência infeliz quase como que de sobrevivência num mundo que tanto os quer (Longtrellis) como os trata de forma indiferente (Highhills) ou até mesmo despreza (Strongcliff).
Assim, o denominador comum a todas estas histórias acaba por ser a luta e a vingança pela sua afirmação como monarcas - eventualmente melhores - de reinos nos quais não se inserem... ou pele menos não sob a forma meio corrupta meio frívola como até então os conheceram. No fundo, todas estas histórias de príncipes e princesas mais não relatam do que a sua vitimização pelos caprichos dos seus pais ou de sociedades que preferem olhar para eles enquanto detentores de um título ou de uma "qualidade" (a beleza) e não pelo potencial humano que podem conferir ao reino. Todos eles atravessaram percursos onde um ou outro pecado capital - ira, vaidade, luxúria... - marcaram presença e tal como as bíblicas Sodoma e Gomorra, os seus reinos - vibrantes nos referidos pecados - necessitam de uma redenção e de uma expiação graças ao "sangue novo" que aos poucos chega ao trono. Mas se "Elias" (Christian Lees) alcança esse trono através da morte de um monstro desconhecido - a "Raínha" em mais um dos seus caprichos - ou se "Violet" comanda Highhills depois de se tornar numa guerreira inquestionada - eliminando o seu potencial marido -, não é menos verdade que o efeito de encantamento que levou "Dora" ao trono cedo irá terminar, como todas as histórias de encantar... mas não num registo de "e viveram felizes para sempre".
Em Il Racconto dei Racconti temos então presente um denominador comum não só com entre as respectivas histórias mas também com aquelas que já conhecemos desde a nossa infância... Perante encantamentos e histórias de príncipes e princesas, a realidade é que todos eles firmam os seus reinos através de sangue, da violência, intrigas e caprichos fazendo com que as tais histórias de "encantar" sejam desde o primeiro instante manchadas pela corrupção do poder - sempre mais apetecível do que qualquer ideia de harmonia.
Garrone que já havia entregue os fortíssimos Gomorra e Reality, opta aqui por uma história diferente, algo alternativa em comparação com o seu anterior registo, que se torna num claro marco pelas suas componentes técnicos nomeadamente o guarda-roupa, direcção artística e caracterização nomeadas aos David mas que eventualmente não terá o mesmo impacto que as suas anteriores obras. A uni-los apenas a violência... Em Gomorra a violência urbana de uma cidade caída às mãos das mafias locais, em Reality a violência de uma vontade extrema de "ser alguém" no mundo e finalmente em Il Racconto dei Racconti a violência a que a vontade de um poder consumado obriga, que destrói o encantamento de uma vida perfeita revelando-se a passagem dos seus intervenientes de um mundo de fantasia para aquele adulto... onde tudo se pode, tudo se faz e principalmente tudo se quer.
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