terça-feira, 5 de abril de 2016

A Estrada 47 (2013)

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A Estrada 47 de Vicente Ferraz é uma longa-metragem luso-italo-brasileira que teve ontem uma exibição especial durante esta edição da Festa do Cinema Italiano que decorre em Lisboa até ao próximo dia 7 de Abril.
Sem estreia comercial prevista em Portugal, A Estrada 47 relata um encontro muito particular entre um conjunto de soldados de três nacionalidades diferentes - brasileiros, italiano e alemão - no decorrer da Segunda Guerra Mundial no norte de Itália.
Depois de em 1942 submarinos alemães e italianos terem atacado navios mercantes brasileiros provocando mais de mil mortos, o Brasil em 1944, envia para a Europa mais de vinte e cinco mil soldados. O Tenente Penha (Júlio Andrade), o Sargento Laurindo (Thogun Teixeira), Guima (Daniel de Oliveira) e Piauí (Francisco Gaspar) são quatro deles que na companhia de Rui (Ivo Canelas), um repórter fotográfico percorrem o norte do país com o intuito de libertarem a infame Estrada 47 e evitarem a fama de desertores numa guerra que aparenta não ter fim.
Começando já pela observação que deveria ser final, Vicente Ferraz consegue com A Estrada 47 a proeza de relatar um momento particular de uma guerra esquizofrénica - não o são todas?! - captando, no entanto, pequenas particularidades de todos os intervenientes que demonstram os seus medos, algumas expectativas e, principalmente, a capacidade de fazer enaltecer a sua humanidade quando tudo à sua volta parece desesperadamente querer elevar a indiferença, o medo e o ódio. A comprová-lo está todo o comportamento destes homens num percurso que inicialmente lhes provoca o pânico, que de seguida os leva à compreensão dos seus actos e que finalmente os conduz a uma missão que tudo tem para ser suicida... auxiliados nesta por aqueles que seriam - à partida - os seus maiores inimigos físicos... o adversário.
Nos instantes iniciais de A Estrada 47, Vicente Ferraz revela ao espectador aqueles instantes iniciais (ou talvez não...), nos quais o militar, desgastado pelo duro despertar de uma realidade que lhe é estranha, se deixa consumir pelo pânico de um momento tenso, adverso pela distância física que do seu meio tem e finalmente, pela compreensão de que está numa situação em que pode ser ele... ou o "outro". O pânico que toma posse dos seus pensamentos, do seu juízo e eventualmente das suas acções lançando-o numa aventura tão ou mais perigosa do que aquela em que se encontra, guiando-o por territórios desconhecidos, pela incerteza de uma realidade que não corresponde aos seus actos mas que certamente o julgará da forma mais incorrecta tendo, dessa forma, uma única saída... ou tenta o improvável - que lhe poderá presentear com a morte física - ou regressa ao seu espaço enfrentando uma morte que poderá igualmente ser física e social. A guerra não perdoa... e estes homens cedo o compreendem.
Num registo de narração, "Guimarães "Guima"" (Daniel de Oliveira) é a voz da consciência e da razão num local e num tempo em que estes parecem ter abandonado todos os homens. Escreve ao pai... uma carta mental... os seus pensamentos do momento que vive, das experiências que atravessa e da sua sobrevivência... física e mental. A sua "carta" é portanto a forma racional que encontra de escapar de um momento irracional onde persistem a morte, a dor, a destruição e o sofrimento. Fala para um pai ausente sobre a honra - sua e da família - sobre o orgulho - do pai - e sobre um contributo para a libertação de um mundo aprisionado... de um mundo em medo. No entanto, é também este medo que está presente nas suas palavras e que deixa compreender - ao espectador - que apesar deste ser o único momento e acto que tem de manter a sua racionalidade, que os seus pensamentos são aqueles de um jovem homem que compreende que a sua vida está num limbo... numa linha contínua em que a vida e a morte se cruzam e que se podem abraçar a qualquer momento. Esta carta sem destino é, de certa forma, a sua consciencialização de que tudo o que faz - ou tudo aquilo que passa - podem ser as últimas experiências e actos que tem... para lá de uma "palavra" a um pai que não está, esta sua carta mais não é do que a sua própria consciência a compreender que o fim é uma certeza... incerta da sua concretização.
Estando todos neles nesse já referido limbo, os brasileiros vêem a incerteza da sua condição ser abalada com a chegada de dois novos intervenientes... O primeiro é um italiano - desertor - que deseja a proximidade a uma família que não sabe se irá encontrar. O segundo é um alemão que não compreende o rumo de uma guerra que ultrapassa os limites do imaginável - alguma vez poderá ter sido aceitável?! - e esta improvável aliança de homens de diferentes nacionalidades e crenças aproxima-os na tal certeza de que um (o) fim é a sua mais provável realidade. Unidos num caminho com um destino incerto, este grupo de homens é apenas separado por uma língua e por uma nacionalidade que, no entanto, encontra a união na extrema vontade de sobrevivência presente em todos ou em pequenos momentos banais onde se fala sobre a família que se deixou, música ou futebol. Para o espectador passa, no entanto, a imagem de um cenário geográfico desolado, de uma miséria que a todos atinge e de um património cultural que, tal como o país, sofre os danos de um conflito para o qual ninguém conscientemente conseguirá encontrar fundamento. Nos seus corações - pelo menos na vontade expressa por um "Guima" sempre muito reflexivo que o seu único desejo é o regresso a um país que agora encontra distante, a uma família que irá encontrar - e que o encontrará - diferente e com a qual quer partilhar uma história (a sua), pela memória e pela necessidade de se reconstruir... enquanto homem. E no final - naquele final - depois de uma libertação anunciada e da sua sobrevivência enquanto unidade, o que lhes resta é o silêncio de uma vida que não conhecem, de rostos que se irão tornar distantes e de um regresso ainda não anunciado para uma vida à qual não saberão adaptar-se. O silêncio.
Pausado mas intenso, A Estrada 47 cedo se transforma num hino à sobrevivência tanto física como mental - principalmente por diversos momentos - e uma sentida homenagem a All Quiet on the Western Front no qual o jovem Erich Maria Remarque tece uma lúcida reflexão sobre os horrores e traumas de uma guerra nunca vista. Não temos Remarque - pelo menos não fisicamente - mas tê-mo-lo em espírito através da presença de uma inspirada interpretação de Daniel de Oliveira que tranquilamente caminha com um espírito perdido e atormentado mas que dá uma cor e esperança à tal lucidez desejada e que mantém o grupo unido nas suas diferenças.
Tendo as montanhas como pano de fundo e um cenário rural que parece querer esconder um pouco do horror sentido, A Estrada 47 brinda-nos não tanto com o que se passa para lá das fronteiras daqueles homens mas sim no interior do grupo, nas suas mentes claramente atormentadas com o horror de uma extinção e com as memórias de uma vida que além de ter sido deixada para trás jamais poderá voltar a ser a mesma. Com uma interessante reconstituição histórica, um conjunto de interpretações que se complementam e um espírito pacifista como mensagem principal - afinal, o que nos separa realmente do "outro"?! - A Estrada 47 é uma (aguardada) e bem amada surpresa, um triunfo do mais recente cinema - brasileiro, português e italiano - e uma obra que para lá da data dos seus factos é contemporânea e, à luz dos dias de hoje, eterna.
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