Cinzento e Negro de Luís Filipe Rocha é uma longa-metragem portuguesa e a mais recente obra do realizador de Sinais de Fogo (1995), Camarate (2001), A Passagem da Noite (2003) e A Outra Margem (2007).
Dois momentos. Um presente e um passado. A separá-los uma morte. Maria (Joana Bárcia) recorre à ajuda de Lucas (Filipe Duarte) para encontrarem o fugitivo David (Miguel Borges). Movimenta-os uma sede de vingança e a vontade de uma vida mais fácil e com muito dinheiro.
Oito anos separam Cinzento e Negro de A Outra Margem, a última longa-metragem do realizador e, ao mesmo tempo, uma forte parceria entre este e o seu actor protagonista Filipe Duarte que aqui volta a ter uma forte interpretação como um polícia marcado por uma tragédia pessoal.
O argumento da autoria do próprio Luís Filipe Rocha centra-se inicialmente na história do "depois" que dá a conhecer ao espectador a relação estabelecida - não se sabe como - entre uma "Maria" despeitada e um "Lucas" que sem objectivos maiores se lança numa aventura desconhecida em busca de um pagamento que lhe irá garantir uma tranquilidade - apenas económica - para o resto dos seus dias. Ambos têm algo que os une para lá da sua missão... Uma debilidade que os consome e os marca na vida. Se "Maria" é uma mulher amargurada por uma qualquer insatisfação sentimental que, sem revelar, nunca chegou a cumprir no seu pleno contentando-se apenas com aquilo que lhe foi proporcionado, "Lucas" é um homem que vive a sua falha através da morte - por um aparente suicídio - da sua filha adolescente por motivos que se mantêm desconhecidos.
É esta ligação - aparente - que os leva a descolar até aos Açores onde procuram "David", um homem cujo passado é apenas revelado por fragmentos daquilo que é contado por "Maria" através de pequenos gestos ou comportamentos que denota o seu carácter. Enquanto ela serve como empregada doméstica de um professor universitário agora paralisado por esclerose múltipla, "David" usa o espaço para viver evitando uma vida errante e parca em objectivos para lá daquele que se prende como uma sobrevivência diária. São estas duas vidas remetidas a uma condição de indigência emocional que suscitam a curiosidade maior do espectador pois é após a fuga de "David" que "Maria" revela (in)voluntariamente a razão do seu despeito maior. Pouco receptiva a homens - resistindo a "Lucas" que a tenta seduzir para uma noite de consolo e prazer - "Maria" apenas revela sentimentos emocionais e carnais para com o seu namorado então fugitivo... É quando percebe a sua própria solidão que "Maria" destrói, num acto de esgotamento emocional, não só as roupas de "David" como também uma misteriosa fotografia que mantém religiosamente guardada numa caixa. Nelas duas crianças e um homem com uma pose familiar que revela a eventual existência de laços consanguíneos entre ambos, facto que apenas ganha nova "confirmação" quando "Maria" explica o invulgar encontro inicial com o "namorado".
Privada de uma vida sentimental e emocional saudável com encontros e desencontros amorosos próprios e naturais no mundo dito exterior, "Maria" sente para lá do roubo que "David" faz ao dinheiro do professor, uma traição passional que a transformam numa mulher desesperada não tanto pelos milhares que lhe iriam conferir uma vida pacificada mas sim pelo perceber que toda a sua vida havia sido fruto de um potencial - para o espectador - incesto que para ela, até certo momento, deverá ter parecido "natural".
Joana Bárcia entrega à sua "Maria" uma loucura e um despeito evidentes mas contidos que o seu olhar transparece a cada instante. Como a sua personagem evidencia em diversos momentos, ela até é capaz de sentir o cheiro daqueles com quem se cruza tal a sua relação de interdependência e "cumplicidade" que com eles cria. Um desempenho forte e o qual agarra com as duas mãos e tal como a "Sara" de A Filha (2003), de Solveig Nordlund, "Maria" acaba por ficar consumida na sua própria rede de relacionamentos.
Na medida oposta temos o "David" de Miguel Borges - finalmente que o fazem regressar ao cinema com um desempenho à sua medida - que acaba por funcionar como um antagonista dos comportamentos de "Maria". Se esta procura uma continuidade - ou vingança - com o abandono de que foi alvo, "David" procura o escape de uma relação com contornos pouco claros e por vezes francamente dúbios que, tal como aquilo que é dado a transparecer ao espectador, se assume como proibida e até mesmo imoral. "David" foge, foge de si, do seu passado, das suas acções que (in)voluntariamente aparentam ter comandado a sua vida. Sem amigos, sem um passado conhecido e vidas conhecidos, nesta apenas com uma única mulher partilhou os seus sentimentos, emoções e sexualidade transparecendo - uma vez mais - que existe algo mais do que um simples "caso" que "surgiu na noite de Natal". Intenso nos seus silêncios e contido nos momentos em que exprime os seus poucos pensamentos permitidos, Miguel Borges dá ao seu "David" uma força desconhecida mas que não será, no entanto, de longa duração.
Já de Filipe Duarte, eventualmente o actor com um percurso cinematográfico que aparenta ser felizmente escolhido a dedo (passo a expressão), entrega ao seu "Lucas" uma dinâmica que o consome lentamente. Sem grandes objectivos, "Lucas" vive amargurado pela perda daquela que era a sua obra maior vivendo no silêncio um desgosto e uma dor que o fazem desligar-se não só do mundo ao seu redor como também daqueles poucos amigos - ou colegas de trabalho - que tem. Ele não quer saber de uma qualquer redenção ou "cura" da sua mágoa... quer simplesmente viver a dor de um sofrimento que sabe jamais irá ser amenizado. Duarte, que há dois anos estreou A Vida Invisível (2013), de Vítor Gonçalves consegue fazer transparecer a amargura e o desencanto das suas personagens para com a vida e o mundo sem que, no entanto, faça desaparecer o brilho de um qualquer objectivo por cumprir.
Com uma cativante direcção de fotografia de André Szankowski que parece inicialmente enclausurar tudo e todos nos seus próprios segredos para depois abrir o espaço sem lhes conferir, no entanto, qualquer redenção ou liberdade, Cinzento e Negro consegue ainda através da sua música original da autoria de Mário Laginha estabelecer uma interessante dinâmica entre espaço versus sentimento denotando uma intensa melancolia e presente desgosto que revelam que há prisões maiores do que aquelas tidas por detrás de grades.
A morte - essa sempre constante - acaba por perseguir todas estas personagens tanto em Lisboa como nos Açores fazendo apenas a transferência de um cenário mais "fechado" da capital para a magnitude de umas ilhas perdidas no meio do Atlântico onde todos podem (conseguem?) ser felizes anónimos onde o passado - pensam - não os persegue. Porque, como é dito algures, há algo mais mortal (ou perigoso) do que a própria morte... e esse algo são os segredos que apenas a alma esconde corrompendo-a silenciosamente.
.
.
8 / 10
.
Sem comentários:
Enviar um comentário