sábado, 23 de abril de 2016

Boi Neon (2015)

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Boi Neon de Gabriel Mascaro é uma longa-metragem brasileira exibida no decurso do IndieLisboa - Festival Internacional de Cinema Independente a decorrer até ao próximo dia 1 de Maio na capital e um dos grandes sucessos do cinema do país do último ano.
No mundo muito reservado das "vaquejadas" brasileiras, Iremar (Juliano Cazarré) é um homem que se ocupa do tratamento dos bois que vão para as rotineiras competições. Juntamente com Galega (Maeve Jinkings), uma bailarina exótica mãe de Cacá (Alyne Santana), uma jovem pré-adolescente com um espírito muito próprio e Zé (Carlos Pessoa), Iremar percorre as estradas do Nordeste brasileiro com um desejo muito próprio... poder transformar-se estilista num mundo onde a masculinidade aparenta ser o cartão de visita de todos aqueles duros e robustos homens.
Gabriel Mascaro, também autor do argumento deste que será eventualmente um forte candidato brasileiro à próxima edição dos Oscars enquanto Filme Estrangeiro, dá corpo a uma história que primeiro estabelece uma linha que separa o Homem do animal - o primeiro trata e o segundo serve de instrumento de trabalho e veículo de acesso ao rendimento - para, de seguida, conseguir estabelecer entre eles um estranho mas inequívoco paralelo.
Num meio rural e tradicional onde a beleza e qualquer tipo de intelectualidade parecem não ocupar lugar, a força manual e o suor do trabalho parecem os elementos fundamentais para uma anunciada sobrevivência. Ali não existem luxos, brilho de algo novo ou tão pouco as habituais condições de vida que qualquer um de nós tem como adquirido. Neste ambiente de esforço, suor e muito trabalho onde o corpo é símbolo de uma resistência, Boi Neon estabelece um invulgar paralelo entre Homem e animais, suas habilidades ou características. Se por um lado a força física do boi é comparada aquela tida pelo Homem para o controlar, domar e retirar dele o necessário para um espectáculo que lhes garante a sua subsistência, não será menos correcto afirmar que dentro de alguns destes homens - "Iremar" mais concretamente - existe um desejo secreto de poder fazer algo mais de uma vida que parece condenada a uma existência meramente passageira. A elegância - ou excentricidade - dos fatos que "Iremar" cria para os espectáculos de "Galega" são, portanto, comparáveis à graciosidade associada ao cavalo, um animal que se exibe naturalmente conferindo um espectáculo visual digno do mais nobre dos desfiles e, não será ao acaso, a escolha desta última de, nos seus shows, usar a cabeça de um cavalo como o símbolo majestoso do mesmo.
Mas Boi Neon tece ainda outras considerações interessantes, nomeadamente no que diz respeito ao papel de género quando no mais improvável dos meios sociais encontramos um homem - neste caso "Iremar" - disposto a concretizar um desejo num outro mundo bem distante do seu... na moda. "Iremar" é um homem acostumado a deixar-se levar pela força das circunstâncias inerentes ao espaço em que vive. No entanto, mais ou menos secretamente faz os factos para os espectáculos de "Galega", percorre os baldios na tentativa de encontrar manequins que possa vestir e nos quais exibir as suas criações, procura por rabo de boi depois dos espectáculos que, de seguida, pinta para fazer chapéus para acompanhar os fatos que cria, recorre a revistas pornográficas para desenhar os seus modelos, tem conhecimentos de moda, perfumes e demais produtos de beleza sem, no entanto, deixar nos demais uma qualquer aversão aos seus gostos pouco comuns no grupo. "Iremar" desafia silenciosamente o "papel" naturalmente atribuído ao homem transformando-se, ele próprio, no mais imediato veículo para a concretização do seu sonho... por concretizar. Este conflito interno - experimentado e não desconhecido - tem o seu clímax num segmento final em que "Iremar" se encontra com "Geisy" na fábrica de têxteis e onde ambos dão cor e confirmação à paixão momentânea que parecem sentir... na própria mesa de desenho e corte... quão simbólico é este momento que expõe o seu intenso desejo... de criação. Identificação de género que é igualmente colocada em cima da mesa quando temos a única mulher protagonista (Maeve Jinkings) que para lá de assumir o papel de mãe é, também ela, a mecânica de serviço, a condutora da camioneta que transporta os animais e, de certa forma, também a figura paterna (ausente) de uma jovem "Cacá" que em vez de vestidos, bonecas ou escola decide permanecer naquele espaço a acompanhar a sua única referência de família e montar a cavalo.
Mas, Boi Neon não é necessariamente um filme de afirmação de género... A longa-metragem de Gabriel Mascaro é ainda um retrato de uma evolução sócio-económica que se prende com manifestações de transição geográfica. Anteriormente única e exclusivamente classificada como uma zona rural, o Nordeste brasileiro é agora um espaço onde a moda parece abundar e os seus sinais são constantes... desde espaços com capacidade para executar desenho gráfico a manequins abandonados, de venda ambulante de bikinis à presença do grupo na "Cidade Fashion", a transição económica da região faz-se sentir em pequenos elementos que parecem denotar uma mudança na forma de "fazer dinheiro" sem que, no entanto, se percam os valores tradicionais de uma região ligada a outras formas de economia mais rural... A ligação entre as vaquejadas e a moda é clara... quando o "Boi" é - ele próprio - associado ao "Neon"... à cor, às lantejoulas e a uma ideia que em junção... parece surreal. É esta transformação - de género, social, parental, económica e até cultural - que definem a acção de Boi Neon, concentrando no mais tradicional dos ambientes, o centro de toda uma evolução que dá esperanças, consome sonhos e confirma realidades presentes e eventualmente imutáveis.
Atípico para o tradicional road movie, ainda que dele denote alguns elementos nomeadamente a constante viagem (em grupo) onde trocam experiências e se transformam enquanto unidade, Boi Neon é também o espelho de uma família - também ela pouco tradicional - que se forma pela permanente convivência de um grupo de pessoas que para lá do trabalho, partilham uma casa (a camioneta), experiências, educação (não formação) e conhecimentos e até o lugar onde tomam as suas refeições sempre perto dos próprios animais que, de certa forma, acabam por pertencer à mesma "matilha".
Equilibrado no seu elenco, Boi Neon faz destacar naturalmente a figura de Juliano Cazarré não pelo seu "tempo" mas pela importância da sua personagem enquanto elo de ligação entre todos. É ele que serve enquanto figura paternal para "Cacá"... de intermediário entre "Galega" e "Zé" e, em relação a este último, aquele que vai "comandando" as acções tomadas... legais ou não... colocando de forma inconsciente o seu sonho sempre num segundo plano como se de algo irreal se tratasse. Intenso no seu silêncio mas persistente numa vontade inerente e que é percebida pelo espectador, o seu "Iremar" equipara-se facilmente a um espírito livre preso a um mundo que não o deixa caminhar rumo a algo diferente - não necessariamente melhor - mas que poderá corresponder a uma vontade extrema... o tal "sonho" que percebe (algures) não ser facilmente concretizável... se é que alguma vez o será. No seio de um mundo onde as oportunidades não abundam, será possível alguma vez perceber e confirmar o seu verdadeiro "eu"?
Boi Neon confirma portanto, não só a vivacidade do cinema brasileiro que, infelizmente, nem sempre chega perto das salas de cinema portuguesas - uma pena! - como especialmente a criatividade e todo um conjunto de novos cineastas brasileiros, nos quais Gabriel Mascaro se integra com a devida e merecida importância, capazes de criar histórias universais e cruas pela franqueza e honestidade como retratam o mundo... aquele que conhecemos e aquele que agora se apresenta como real.
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8 / 10
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