Bestas do Sul Selvagem de Benh Zeitlin é um dos filmes mais antecipados para a temporada de prémios que se avizinha e um dos que abriu a edição deste ano do Lisbon & Estoril Film Festival com duas sessões, uma no cinema Monumental em Lisboa e outra no Centro de Congressos do Estoril.
Hushpuppy (Quvenzhané Wallis), é uma jovem menina que vive com o pai Wink (Dwight Henry), em Bathtub, uma pequena comunidade bayou, bem afastados de toda a noção que poderemos ter daquilo que é a civilização.
Num meio pobre e onde as dificuldades são extremas, o amor e o afecto estão longe de ser uma prioridade na vida destas pessoas que aos poucos se vão consumindo entre alcoól e desastres naturais que transformam as suas já debilitadas vidas em miséria compeleta. É neste meio que a relação entre pai e filha se encontra num misto entre distâncias e relações que parecem estar apenas ligadas por uma obrigatoriedade de laços familiares mas desprovidas de toda a sensibilidade e afecto que deveriam ter. No momento em que sabemos que Wink está gravemente doente, percebemos que a sua última missão na vida é através de uma estranha forma de amor, duro, bruto mas carregado de muito sentimento, preparar Hushpuppy para a realidade que terá de enfrentar num mundo do qual ele já não fará parte.
Tão forte como as manifestações climatéricas que vemos ao longo deste filme, e que transformam de certa forma todo o destino das personagens que nele co-habitam, está a interpretação de Wallis que demonstra ser para a sua curta idade (apenas seis anos), uma verdadeira força da natureza. Os momentos de fantasia repletos da sua determinação são de tirar o fôlego a qualquer um e a emotividade que expressa no seu rosto são de deixar a pensar onde estará esta jovem actriz daqui a vinte anos. Sorrimos com a sua inocência, emocionamo-nos com o seu olhar e, sem quebrar a surpresa sobre os seus instantes finais no filme, apenas posso dizer que são do mais comovedor e emocionante possível e como através de um conjunto tão escasso de palavras se poderem transmitir uma quantidade tão grande de emoções que nos deixam literalmente sem palavras. Com ou sem nomeação na próxima edição dos Oscars (espero bem que ela chegue), o que é certo é que esta poderá ser, sem qualquer reserva, uma das melhores interpretações do ano.
No entanto há também que fazer a devida justiça a Dwight Henry, que também vejo recolher uma nomeação como Actor Secundário com bastante facilidade, que aqui encarna Wink, o pai de Hushpuppy. Forte, cru, duro e aparentemente desprovido de grandes doses de sentimentos pela sua filha a quem apenas pegou por duas vezes na vida demonstra, no entanto, que a maior prova de amor que lhe poderia dar era prepará-la para o dia em que já lá não estaria com ela. Repito o que disso há pouco sobre Wallis... os instantes finais entre estes dois actores são de retirar o nosso fôlego. Quando os olhares, os gestos de maior ou menor humanidade e que não precisam de ser acompanhados de grandes palavras bastanto apenas o bater do coração, conseguem ser reveladores de uma sensibilidade que nem sempre estamos habituados a ver no cinema.
São de facto duas interpretações fortes e de peso que conseguem eclipsar todas as outras, pois afinal estamos ali é para ver a interacção entre ambos e os demais são quase meras peças decorativas, e que suspeito estarão para dar muito que falar nesta temporada de prémios mas não só. Este filme está recheado de pequenos grandes detalhes que o completam harmoniosamente. A fotografia, quase mágica graças às talentosas mãos de Ben Richardson, transporta-nos entre dois mundos... Aquele que é real e sabemos que a jovem Hushpuppy está realmente a atravessar e o outro, que ela imagina como forma de protecção para com as suas inseguranças e incertezas. Os jogos de luz, de sombras e de cor mantêm-nos num misto entre dois mundos paralelos vistos através dos olhos de uma criança que se sente perdida no mundo e procura desesperadamente pelo seu lugar.
Finalmente não menos importante, aliás bem pelo contrário, a banda-sonora da autoria de Dan Romer e do próprio Benh Zeitlin que quase se assume como uma nova personagem invisível do filme mas que a sentimos sempre presente. É espirituosa nos momentos em que a jovem Hushpuppy se aventura pelo "seu" mundo, e perfeitamente emotiva quando sentimos que estamos numa fase de perda. Simplesmente perfeita.
E o argumento também da autoria de Benh Zeitlin e de Lucy Alibar com base numa peça sua, impossível não mencionar, que entre magia e aventura, alguns apontamentos de comédia e um drama sério e sentimental, mostra o despertar precoce de uma menina para uma idade adulta onde percebe que a partir de um exacto momento da sua vida, que a marcará para sempre, só poderá contar com ela própria para (sobre)viver.
No meio de tantos aspectos positivos tenho, no entanto, um menos bom a destacar e que no início do filme acaba por se tornar até bastante incomodativo que é o sistema "hand-cam" que consegue "arruinar" algum impacto mais dramático que a apresentação das personagens possa ter. Felizmente com o passar do tempo esse mesmo sistema acaba por se enquadrar na própria história e ou desaparece ou até se torna justificado. Mas inicialmente... é dose...
Mas, no entanto, no final se fôr preciso caracterizar numa única palavra todo este filme essa seria sem margem para dúvida... mágico. E assim que estrear em sala, vão de mente aberta e não o percam.
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"Hushpuppy: I see that I am a little piece of a big, big universe, and that makes it right."
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9 / 10
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