Laurence para Sempre de Xavier Dolan era um dos filmes em cartaz no Lisbon & Estoril Film Festival que mais expectativa me causava, em boa verdade por colocar na interpretação principal um dos actores franceses de "nova geração" que mais admiro... Melvil Poupaud.
Laurence Alia (Poupaud) é um homem comum... Tem uma vida bem sucedida enquanto professor de uma escola secundária, uma família disfuncional como tantas outras e vive uma intensa e apaixonada relação com Fred (Suzanne Clément), uma mulher liberal e rebelde que o ama desde o primeiro dia que o conheceu.
No entanto, no meio de tanta aparente banalidade que apenas é enriquecida pela relação sempre quente de ambos, Laurence tem um segredo que aos poucos o começa a ensombrar. Laurence não se sente bem dentro do corpo que tem e deseja ser mulher. Sempre o desejou.
Quando confronta Fred, a família, a escola e os seus colegas e, no fundo, toda a sociedade com a sua verdadeira identidade, Laurence depara-se com a maior provação pela qual a sua vida iria conhecer. No entanto, entre ser fiel aos outros ou a si, à sua consciência e aos seus sentimentos, ele terá de fazer uma escolha que irá definitivamente alterar toda a sua vida.
Se alguém se assustar com a duração do filme (perto de três horas), adianto desde já que ao vê-lo nem sequer nos damos conta do tempo passar. A história, as interpretações e o delírio visual que as imagens nos transmitem conseguem prender-nos ao ecrã desde o primeiro instante. Sim, este filme é realmente cativante e apesar de não ter estreado comercialmente este ano no nosso país, ele é um dos melhores que qualquer sala de cinema viu exibir.
Começando pelas interpretações, e pela de Melvil Poupaud mais concretamente, em nada me espantaria que esta fosse uma das mais marcantes que a sua carreira irá ter. Que venham muitas mais, não me interpretem mal, mas aqui sente-se que se entregou de corpo e alma e em nada me espantaria que conseguisse obter uma nomeação ao César (se não o próprio prémio). Ao longo do filme assistimos a um crescendo emocional significativo. De início o seu "Laurence" é um homem feliz, realizado e de bem com a vida tanto pessoal como profissional que sente preenchida não com a sua família disfuncional e que parece não aceitar muito daquilo que ele representa por muito "normal" que pareça. Aos poucos, e com o seu crescente sentimento de inadaptação percebemos que o desconforto com o seu corpo é algo que Poupaud consegue recriar na perfeição. Os primeiros adereços femininos, o cabelo que cresce e as pinturas que usa começam a dar um corpo "real" àquilo que ele sente e nós, espectadores, percebemos que a sua transformação avança passo-a-passo frente ao que ele realmente quer transmitir. Não é sempre que um actor, especialmente numa interpretação deste estilo, consegue passar para o outro lado do ecrã (o nosso), a verdadeira essência da personagem que ele interpreta. Melvil consegue e os seus momentos, do primeiro ao último, mostram um verdadeiro mestre. Existe todos os anos uma publicação que numa rtigo refere "as dez grandes interpretações do ano que não irão ser nomeadas a Oscar"... esta é uma dessas interpretações.
Mas ao lado de um excelente actor está sempre uma excelente actriz que comparte com ele os seus momentos mais "íntimos". E Suzanne Clément é essa actriz. Ao dar corpo e alma a "Fred", Clément interpreta a mulher eternamente apaixonada que seguirá o seu coração para todo o lado independentemente de onde ele se encontre. Da mesma forma, os momentos em que entra numa espiral de desespero e de revolta são tensos e muito intensos ao ponto de assistirmos a diversas explosões de cólera que conseguem literalmente "parar" o momento.
Esta dupla funciona na perfeição. A química entre ambos sente-se em todos os momentos nos quais partilham o ecrã, e mesmo quando não o fazem sentimos que um falta ao outro. Existe quase como que uma "presença" daquele que está em falta e que consegue de certa forma completar o momento. Afinal, mesmo quando separados, não deixam de pensar um no outro. No que fará... onde está... com quem...
Xavier Dolan que também assina o argumento, consegue através dele dar um retrato fidedigno da viagem e da transformação de "Laurence". Dos momentos em que vive (aparentemente) bem com "Fred", passando pelos primeiros sintomas de mal-estar no corpo que habita e pela relação que tem com os outros e com a própria sociedade, a aceitação e compreensão da sua sexualidade, até ao momento em que se assume finalmente como uma mulher são brilhantemente retratados como um enorme drama transformacional repleto de momentos em que quase chega ao fundo quer pela falta de apoio e compreensão quer por ser momentos em que é realmente testado da sua nova condição e convicções.
Tecnicamente há que destacar a exuberância de muitos dos segmentos musicais que, eles próprios, retratam os diversos estados de espírito de "Laurence". Desde Fade to Grey de Visage passando por Funeral Party dos The Cure, Enjoy the Silence dos Depeche Mode ou até mesmo alguns êxitos de Celine Dion, a extraordinariamente bem escolhida banda-sonora consegue também ela recriar em breves segmentos as várias fases pelas quais a relação de Fred e Laurence atravessa. Não se resume à música em si, mas também ao verdadeiro deleite de imagem que é criado nomeadamente ao som de Fade to Grey e já mais perto do final de A New Error, que são imagens de pura beleza e opulência física e natural que valem por si só.
A complementar todo o ambiente que o filme nos recria, quer no que diz respeito a cenários de Colombe Raby e Pascale Deschênes ou da fotografia de Yves Bélanger, só podemos encontrar excelência. Os jogos de luz que recriam o estado de espírito e os momentos pelos quais Laurence atravessa, conseguem eles próprios falar e demonstrar a confusão que aquela personagem "vive", e são eles também um importante factor para o sucesso deste gandioso filme onde, felizmente, nada parece deixado ao acaso.
Se é justo dizer que Melvil Poupaud e Suzanne Clément são as duas almas deste filme, não é menos verdade dizer que está também repleto de importantes interpretações secundárias que em específicos momentos do filme conseguem ser fundamentais para o crescendo emocional de ambos. Por um lado temos a austera mãe de "Laurence", interpretada por Nathalie Baye, que com ele tem uma fria relação de mãe/filho, mas que com o assumir da sua verdadeira identidade faz nascer entre ambos uma saudável relação de mãe/filha. Por outro, há que destacar aqueles que o/a ajudaram a crescer enquanto mulher, a família Rose. Catherine Bégin, Emmanuel Schwartz, Jacques Lavallée, Perrette Souplex e Patricia Tulasne conseguem durante os poucos momentos em que nos presenteiam com a sua presença, transformar em humor os seus próprios dramas pessoais do passado para que "Laurence" consiga ter algo que a elas em tempos lhes faltou... respeito. Tanto dos outros como, principalmente, por si próprio/a.
Muito mais poderia dizer sobre este filme mas, no entanto, considero que é importante vê-lo e deixarmo-nos levar pelo delírio da história, das magníficas interpretações mas também pelo delírio visual que nos consegue por diversos momentos enfeitiçar quer pela sua simplicidade e inocência como também pela sua opulência e extravagância. Mas sobretudo por ser uma história de amor. Diferente do habitual é certo, mas ainda assim uma história de amor que prova que mesmo diferente, existe. E existe mesmo contra todos os padrões convencionalmente estabelecidos... mesmo que no final não termine como esperamos. Ou talvez não...
.Laurence Alia (Poupaud) é um homem comum... Tem uma vida bem sucedida enquanto professor de uma escola secundária, uma família disfuncional como tantas outras e vive uma intensa e apaixonada relação com Fred (Suzanne Clément), uma mulher liberal e rebelde que o ama desde o primeiro dia que o conheceu.
No entanto, no meio de tanta aparente banalidade que apenas é enriquecida pela relação sempre quente de ambos, Laurence tem um segredo que aos poucos o começa a ensombrar. Laurence não se sente bem dentro do corpo que tem e deseja ser mulher. Sempre o desejou.
Quando confronta Fred, a família, a escola e os seus colegas e, no fundo, toda a sociedade com a sua verdadeira identidade, Laurence depara-se com a maior provação pela qual a sua vida iria conhecer. No entanto, entre ser fiel aos outros ou a si, à sua consciência e aos seus sentimentos, ele terá de fazer uma escolha que irá definitivamente alterar toda a sua vida.
Se alguém se assustar com a duração do filme (perto de três horas), adianto desde já que ao vê-lo nem sequer nos damos conta do tempo passar. A história, as interpretações e o delírio visual que as imagens nos transmitem conseguem prender-nos ao ecrã desde o primeiro instante. Sim, este filme é realmente cativante e apesar de não ter estreado comercialmente este ano no nosso país, ele é um dos melhores que qualquer sala de cinema viu exibir.
Começando pelas interpretações, e pela de Melvil Poupaud mais concretamente, em nada me espantaria que esta fosse uma das mais marcantes que a sua carreira irá ter. Que venham muitas mais, não me interpretem mal, mas aqui sente-se que se entregou de corpo e alma e em nada me espantaria que conseguisse obter uma nomeação ao César (se não o próprio prémio). Ao longo do filme assistimos a um crescendo emocional significativo. De início o seu "Laurence" é um homem feliz, realizado e de bem com a vida tanto pessoal como profissional que sente preenchida não com a sua família disfuncional e que parece não aceitar muito daquilo que ele representa por muito "normal" que pareça. Aos poucos, e com o seu crescente sentimento de inadaptação percebemos que o desconforto com o seu corpo é algo que Poupaud consegue recriar na perfeição. Os primeiros adereços femininos, o cabelo que cresce e as pinturas que usa começam a dar um corpo "real" àquilo que ele sente e nós, espectadores, percebemos que a sua transformação avança passo-a-passo frente ao que ele realmente quer transmitir. Não é sempre que um actor, especialmente numa interpretação deste estilo, consegue passar para o outro lado do ecrã (o nosso), a verdadeira essência da personagem que ele interpreta. Melvil consegue e os seus momentos, do primeiro ao último, mostram um verdadeiro mestre. Existe todos os anos uma publicação que numa rtigo refere "as dez grandes interpretações do ano que não irão ser nomeadas a Oscar"... esta é uma dessas interpretações.
Mas ao lado de um excelente actor está sempre uma excelente actriz que comparte com ele os seus momentos mais "íntimos". E Suzanne Clément é essa actriz. Ao dar corpo e alma a "Fred", Clément interpreta a mulher eternamente apaixonada que seguirá o seu coração para todo o lado independentemente de onde ele se encontre. Da mesma forma, os momentos em que entra numa espiral de desespero e de revolta são tensos e muito intensos ao ponto de assistirmos a diversas explosões de cólera que conseguem literalmente "parar" o momento.
Esta dupla funciona na perfeição. A química entre ambos sente-se em todos os momentos nos quais partilham o ecrã, e mesmo quando não o fazem sentimos que um falta ao outro. Existe quase como que uma "presença" daquele que está em falta e que consegue de certa forma completar o momento. Afinal, mesmo quando separados, não deixam de pensar um no outro. No que fará... onde está... com quem...
Xavier Dolan que também assina o argumento, consegue através dele dar um retrato fidedigno da viagem e da transformação de "Laurence". Dos momentos em que vive (aparentemente) bem com "Fred", passando pelos primeiros sintomas de mal-estar no corpo que habita e pela relação que tem com os outros e com a própria sociedade, a aceitação e compreensão da sua sexualidade, até ao momento em que se assume finalmente como uma mulher são brilhantemente retratados como um enorme drama transformacional repleto de momentos em que quase chega ao fundo quer pela falta de apoio e compreensão quer por ser momentos em que é realmente testado da sua nova condição e convicções.
Tecnicamente há que destacar a exuberância de muitos dos segmentos musicais que, eles próprios, retratam os diversos estados de espírito de "Laurence". Desde Fade to Grey de Visage passando por Funeral Party dos The Cure, Enjoy the Silence dos Depeche Mode ou até mesmo alguns êxitos de Celine Dion, a extraordinariamente bem escolhida banda-sonora consegue também ela recriar em breves segmentos as várias fases pelas quais a relação de Fred e Laurence atravessa. Não se resume à música em si, mas também ao verdadeiro deleite de imagem que é criado nomeadamente ao som de Fade to Grey e já mais perto do final de A New Error, que são imagens de pura beleza e opulência física e natural que valem por si só.
A complementar todo o ambiente que o filme nos recria, quer no que diz respeito a cenários de Colombe Raby e Pascale Deschênes ou da fotografia de Yves Bélanger, só podemos encontrar excelência. Os jogos de luz que recriam o estado de espírito e os momentos pelos quais Laurence atravessa, conseguem eles próprios falar e demonstrar a confusão que aquela personagem "vive", e são eles também um importante factor para o sucesso deste gandioso filme onde, felizmente, nada parece deixado ao acaso.
Se é justo dizer que Melvil Poupaud e Suzanne Clément são as duas almas deste filme, não é menos verdade dizer que está também repleto de importantes interpretações secundárias que em específicos momentos do filme conseguem ser fundamentais para o crescendo emocional de ambos. Por um lado temos a austera mãe de "Laurence", interpretada por Nathalie Baye, que com ele tem uma fria relação de mãe/filho, mas que com o assumir da sua verdadeira identidade faz nascer entre ambos uma saudável relação de mãe/filha. Por outro, há que destacar aqueles que o/a ajudaram a crescer enquanto mulher, a família Rose. Catherine Bégin, Emmanuel Schwartz, Jacques Lavallée, Perrette Souplex e Patricia Tulasne conseguem durante os poucos momentos em que nos presenteiam com a sua presença, transformar em humor os seus próprios dramas pessoais do passado para que "Laurence" consiga ter algo que a elas em tempos lhes faltou... respeito. Tanto dos outros como, principalmente, por si próprio/a.
Muito mais poderia dizer sobre este filme mas, no entanto, considero que é importante vê-lo e deixarmo-nos levar pelo delírio da história, das magníficas interpretações mas também pelo delírio visual que nos consegue por diversos momentos enfeitiçar quer pela sua simplicidade e inocência como também pela sua opulência e extravagância. Mas sobretudo por ser uma história de amor. Diferente do habitual é certo, mas ainda assim uma história de amor que prova que mesmo diferente, existe. E existe mesmo contra todos os padrões convencionalmente estabelecidos... mesmo que no final não termine como esperamos. Ou talvez não...
10 / 10
..
Sem comentários:
Enviar um comentário