quinta-feira, 7 de junho de 2018

Our Madness (2018)

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Our Madness de João Viana (Portugal/França/Moçambique) é uma das longas-metragens que esteve presente na competição oficial nacional da décima-quinta edição do IndieLisboa - Festival Internacional de Cinema Independente que decorreu na Culturgest e Cinema São Jorge, em Lisboa entre os passados dias 26 de Abril e 6 de Maio.
Lucy (Ernania Raínha) está internada no Hospital Psiquiátrico de Infulene, em Moçambique. Lucy procura o filho Zacaria (Hanic Corio) de quem não tem notícias e o marido Pak (Pak Ndjamena) que está na guerra. Num país que não é estranho à guerra, Lucy tenta sobreviver aos efeitos que a mesma lhe deixou.
O argumento da autoria de João Viana deixa o espectador dividido desde os primeiros instantes. Dividido entre a realidade dos efeitos de um conflito que durou durante décadas no país - podemos reconhecê-lo nas infraestruturas em ruínas, num país onde a vida humana se encontra dispersa bem como no próprio hospital psiquiátrico onde muitos permanecem sem que, no entanto, não pareçam de facto estar naquele local - e o imaginado que nos coloca perante uma história que recorre à metáfora do purgatório para apresentar todo um conjunto de personagens que não sabem, ou reconhecem, o lugar onde estão e os "porquês" de ali se encontrarem, Our Madness acaba por ser não só por ser uma reflexão sobre o conflito como principalmente sobre os devastadores efeitos que dele decorrem.
Partindo deste pressuposto, Our Madness apresenta a primeira dinâmica - o hospital psiquiátrico - como o local onde aquelas almas perdidas na sua própria noção de realidade se encontram. Ali vivem sem que na realidade compreendam esta estadia como uma qualquer consequência da sua divagação no mundo. O espectador acompanha-os observando que os corredores daquele hospital estão vazios de assistência médica, de serviços sociais, de pessoal administrativo ou mesmo de visitas que aguardem por ver como estão os seus entes queridos lançando de imediato a dúvida sobre o que realmente acontece naquele espaço. Assim, é esta dúvida que lança um segundo possível momento em que escutamos uma mensagem nos intercomunicadores que apregoa que "é preciso fé" para todo o tipo de possibilidades e crenças em que os ouvintes possam professar a sua equacionando, dessa forma, que a esperança proporcione, um dia, a hipótese de lançar estes "transeuntes" num universo mais real à - ou para com a - sua condição. É neste momento que o espectador mais compreende que esta realidade possa não o ser na verdade, ou seja, aquilo que observamos é um ponto de estada temporária onde as almas daqueles que supostamente "já partiram" esperam para encontrar os seus entes mais próximos e que os acompanharão realmente para esse "outro lado" onde irão finalmente descansar.
É esta compreensão da realidade no hospital que assim lança o espectador para os primeiros comentários de Our Madness quando se refere que há cinco séculos (com a escravatura) as almas fugiam nos sonhos... há três séculos (com as guerras dos outros)... fugiam nos sonhos... há cem anos (sob um regime fantoche)... fugiam também nos sonhos e agora, naquele espaço, é pelos sonhos que conseguem finalmente fazer-se sentir (aos vivos) como estando ainda presentes na sua realidade... seja ela qual fôr e talvez explicando dessa forma como os três protagonistas deambulam pelo chamado "país real" aguardando um reencontro que tarda mas chega... perdendo-se novamente pelas suas realidades imaginadas como que mantendo uma esperança de que essa sua realidade o seja para os demais que não observamos ou, por outras palavras, os vivos distantes noutro "universo".
Outro elemento que (n)os lança no imaginário do purgatório é a constante revelação de que estas personagens comunicam mais através dos olhares e de breves murmúrios que expõem (ao espectador), ou dos seus pequenos hábitos ou espaços seguros que os levam a um conjunto de comportamentos incompreensíveis se a dita "normalidade" marcasse presença. Existe um constante imaginário surreal nos seus comportamentos encarando tudo o que os rodeia com uma aparente tranquilidade e passividade incoerente para quem se sente vivo (ou disso tenha percepção) e que sinta a falta da sua rotina... "Zacaria" surge e desaparece do seu imaginário com a mesma regularidade com que "Pak" se mantém na guerra no mato tentando matar algo que o próprio não encontra culminando ambas as realidades com um elogio ao "corpo"... destroçado em Guernica... linchado no Alabama... eliminado em Auschwitz... mutilado em Hiroshima... segregado em Sharpville ou, no fundo metralhado no século XX. A liberdade, de corpo e de espírito tarda... e apenas quando pode repousar em espaço de tranquilidade encontrará finalmente a liberdade.
Se a dinâmica de acção em tempo real consegue, por momentos, levar o espectador a uma crença de que está perante um conjunto de personagens apenas perdidas nos seus próprios pensamentos, é esta "realidade" de purgatório que ganha uma maior credibilidade quando todo o universo - de personagens, de história e de comportamentos - parece ligado através de um conjunto de momentos nem sempre coerentes ou de uma continuidade espaço-temporal que o espectador facilmente considera como distante em relação à forma como tudo surge, acontece ou aparece. Assim, apenas num universo distante dessa realidade dos vivos poderia equacionar estes comportamentos "pouco lógicos", de perda, de afastamento, de busca e de procura onde se vagueia por um espaço potencialmente desconhecido à procura de alguém que surge e desaparece nos mais inesperados locais... e mesmo quando se comprova que não está "lá"... de repente reaparece como se o momentos anterior não tivesse alguma vez existido.
Longe de uma história de terror pois aqui nenhuma destas personagens vive num iminente receio de algo maligno que surja no horizonte, Our Madness é sim uma viagem sobrenatural a um conjunto de mentes perdidas . ou desaparecidas - num universo alternativo que apenas procuram um descanso eterno junto daqueles que reconhecem como parte da sua existência anterior. Muitos são aqueles que vagueiam pelo desconhecido do "além vida" mas, no entanto, poucos são aqueles que o reconhecem como tal para conseguirem encontrar o tal descanso eterno que o "corpo" anseie.
A loucura (a nossa), persiste em lançar os corpos vivos numa constante convivência de guerra e conflito que perturba o tal "depois"... é aí que esta longa-metragem se centra... na vontade explícita de uma mente inquieta que, sem o seu descanso eterno, procura tudo aquilo que ainda mantém vivo da sua existência passada e, como tal, construir a sua nova "vida" (ou aquilo que dela resiste) de forma imperturbável e pacífica... e Ernania Raínha, como a protagonista desta história pós-vida, é simplesmente deslumbrante e sublime fazendo com que os seus silêncios cheios de vida revelem que existe algo mais para lá de todo o dito sofrimento ou provação que se teve (ela... nós) em vida e do seu descanso uma possibilidade assumida.
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