Marighella de Wagner Moura (Brasil) presente numa das Sessões Especiais desta décima-terceira edição do LEFFEST - Lisbon & Sintra Film Festival a decorrer até ao próximo dia 25 de Novembro e assumindo-se como um dos grandes filmes do ano e, seguramente, uma forte aposta do novo cinema brasileiro.
Finais da década de '60. O Brasil vive sob uma ditadura militar que depôs em 1964 o Presidente eleito João Goulart. A violenta ditadura militar instalada com grande apoio populacional mas com a oposição de Carlos Marighella classificado pelo regime - que duraria até 1985 - como o inimigo público número um do Brasil.
Oscilando entre dois momentos específicos na vida do revolucionário Carlos Marighella (1964 com o início do golpe e 1968 em que a luta dos revolucionários era já uma certeza), a longa-metragem de Wagner Moura assume-se desde os instantes iniciais como uma poderosa história de resistência, de resiliência, de perda mas sobretudo de uma forte componente humanista que expõe os homens e mulheres que se opuseram à brutalidade do regime, os seus sonhos de uma vida em liberdade e, sobretudo o seu desencanto por uma sociedade na qual a repressão e a perseguição se solidificava com o apoio de uma maioria que se mantinha silenciosa ou pactuante.
Com mais de duas horas e meia de duração, não há um instante em Marighella que seja ao acaso. Tudo tem uma continuidade lógica e cada momento é vividamente absorvido pelo espectador que ora se deixa encantar pelo homem por detrás do nome ora se emociona com a realidade dos acontecimentos que sabe de antemão. Marighella começa como, de certa forma, põe o fim a todo um relato da vida de quatro anos deste homem... uma história e um legado para o seu filho. Na beira da mudança de regime, "Carlos Marighella" (Seu Jorge) é um homem que vive na clandestinidade e num constante receio da perseguição dos agentes do novo governo vivendo, ainda assim, com uma certa exposição pública que o leva a visitar aquilo que tem de mais precioso... o seu filho.
Os sinais do regime são evidentes... os constantes desfiles militares pela cidade, o receio de falar mais do que o devido num sítio público onde poderá ser escutado por qualquer um e até mesmo a sentida necessidade de se esconder naqueles espaços que sempre foram seus mas que agora são do domínio de um poder autoritário. A oposição ao comunismo, ou àquela que era encarada como a sua ameaça, levava às prisões aleatórias a todos os recantos onde se pensasse que a sua doutrina estava a ser ensinada... do mais simples cidadão às universidades passando mesmo pela Igreja tantas vezes associada a um maior conservadorismo. Este é todo um contexto em que Marighella se enquadra. Mas será este filme apenas e só sobre essa realidade? Não... longe disso.
Wagner Moura concentrou-se, e bem considerando os tempos conturbados que cinquenta anos depois o Brasil volta a viver, em enquadrar o espectador no tempo no espaço e nos agentes nos quais esta parte da História se centra mas, ao mesmo tempo, tem o cuidado de respeitar o Homem para lá da sua militância e resistência ao regime. Marighella vê a luz através da próxima relação que o protagonista tem com o seu filho. Filho esse a quem dedica uma "carta" explicando a sua ausência. Mais... uma carta na qual lhe endereça o seu legado. Independentemente de o fim último ser ou não conseguido - não o seria uma vez que a ditadura militar só viria a terminar vinte e um anos depois em 1985 -, aquilo que ele enquanto homem desejava é que o filho pudesse viver num país melhor. Aliás, não só o seu filho mas os de todos... como um testamento anunciado para que o país saísse de um obscurantismo ultra-conservador que reprimia e assassinava todos aqueles que lhe fizessem frente. É esse legado, ou até mesmo essa opus maior que acaba por ser o denominador centrar de toda esta longa-metragem que não tem um único momento "morto". Moura, de câmara segura e fixa, obriga (mas de forma voluntária) o espectador a abraçar "Marighella" enquanto um lutador pela liberdade... Um lutador que depois do desencanto de ver o seu povo de costas voltadas para a sua causa - e que no fundo seria a de todos -, e também de um Partido Comunista tímido e reticente à luta, recorreu às armas e também a um outro tipo de violência paa se (a)firmar no terreno assumindo, dessa forma, que apenas pela força se pode combater a própria.
O legado de "Marighella" para o filho não foi, no entanto, esquecido. Para qualquer um dos resistentes aqui retratados - ou para tantos outros aos quais é dado também um rosto -, existe um drama associado... o distanciamento das famílias, o sofrimento causado pelo mesmo, as gerações perdidas e as pressões diárias que vivem quer pela ostracização social quer também pela constante vigilância que poderia resultar na prisão de mais um dos resistentes. Da vilanização dos resistentes como forma de destruição da sua moral e oposição da população de uma forma geral, existia uma necessidade por parte dos emissários deste novo regime para que "Marighella" e os seus apoiantes fossem condenados pela sociedade antes de serem detidos - ou eliminados - pelo mesmo numa clara alusão de que a "maçã" deve apodrecer primeiro por dentro para depois ser fortemente retirada da circulação. Mas se internamente "Marighella" sofria a perseguição do regime intimamente apoiado pelos Estados Unidos, era de França e de demais regimes de esquerda que surgia a sua rendição enquanto um homem que lutava pelos direitos da população. Mas a sua mensagem, ou legado, mantinha-se intacto... liberdade para o seu povo e generosidade, lealdade e honestidade para um filho em pleno desenvolvimento num momento em que todas estas características parecem dispensáveis quando o medo se apodera dos sentidos mais básicos de cada um.
Independentemente de conhecermos o final trágico deste momento da História, Wagner Moura prepara o espectador para aquilo que o mesmo sabe ser inevitável... o fim. O fim de "Marighella" enquanto um resistente... a sua compreensão de que o fim se aproximava a passos largos mas, ainda assim, a completa noção de que a obra iria, no futuro, resistir (tal como ele) e persistir para que a liberdade fosse, de facto, uma confirmação. É impossível assistir a esta longa-metragem e, concordando ou não com os actos de violência tomados por parte destes resistentes, ser incapaz de nos identificarmos com a sua extrema e justa necessidade de obter a liberdade que tanto desejam. A vontade de serem representados livremente e poderem manifestar-se ou conhecer o que quisessem sem que a mão conservadora do regime proibisse ou regulasse aquilo ao qual todos pudessem ter acesso. Sentir a liberdade da interferência estrangeira no país e a forma como esta delimitava os limites e as fronteiras daquilo que era "permitido" ter ou ser. "Marighella" - o homem - deixou sim um legado pago com a sua vida mas fortemente transcrito nas suas palavras que resistiram - resistem - ao tempo e a qualquer revanchismo absolutista que teime em se afirmar. A vontade de liberdade do Homem é maior do que a sua forçada prisão e ainda que esta se possa confirmar fisicamente, o pensamento irá perdurar para lá de qualquer grade que lhe seja imposta.
"Marighella" teve assim a sua justa adaptação cinematográfica tendo ganho corpo através de uma magistral interpretação de Seu Jorge que capta de forma distinta mas firme, não só a sua componente revolucionária como também uma perspectiva pessoal e mais emocional do homem para lá da luta. Dinâmico na sua intensa luta de resistência mas afectivo para com os amigos e com a família, Seu Jorge não receia a sua exposição e a sua perspectiva do "homem" para lá daquilo que a História dele reserva. Intenso, carismático e próximo da câmara - logo, do espectador -, Seu Jorge tem seguramente uma das interpretações mais marcantes deste último ano cinematográfico transformando o "Homem" como um seu expressivo alter ego difícil de ultrapassar. Mas como todos os heróis precisam do seu vilão de serviço, é Bruno Gagliasso com o seu "Inspector Lúcio" que se afirma como o lado negro da História. Corrosivo, agressivo e implacável, Gagliasso confere à sua personagem um conjunto de características que provocam o repúdio do espectador pela brutalidade das suas acções bem como pelos métodos utilizados para que a sua vontade "patriótica" vingasse num país que, para infortúnio dos demais, compreendia e sabia como fazer mover. Dois homens que funcionam como mútua antítese mas cujos actores que lhes dão corpo e alma conseguem dinamizar a sua energia para criar um pólo de atracção perfeito para que esta longa-metragem não tenha um único momento que seja considerado superficial.
Polémicas políticas à parte - aquelas que levam este filme a ser "proibido" aos olhares brasileiros -, Wagner Moura cria uma obra maior do cinema de terras de Vera Cruz. Um testemunho histórico do tempo, da sociedade, do Homem e dos homens... dos regimes, das vontades, dos sonhos e das suas privações que "apenas" tem um único propósito final... o desejo intenso de uma liberdade que tarda... que por vezes parece perdida... mas que um dia chega e se firma pedindo que nunca se deixe de por ela lutar... e resistir.
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"Memória de um tempo que lutar pelo seu direito é um defeito que mata."
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