quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Shelley (2016)

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Shelley de Ali Abbasi é uma longa-metragem dinamarquesa presente na competição ao Prémio de Melhor Longa Europeia nesta décima edição do MOTELx - Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa que decorre no Cinema São Jorge, em Lisboa até ao próximo dia 11 de Setembro.
Elena (Cosmina Stratan) é uma jovem romena que chega à Dinamarca para cuidar de Louise (Ellen Dorrit Petersen), uma mulher com um estado de saúde debilitado depois de vários tratamentos e operações. Kasper (Peter Christoffersen), o marido, diz a Elena que o trabalho dela será simples numa propriedade onde os ecos da modernidade ainda não chegaram. Mas quando Elena sabe que Louise não pode engravidar, um pacto inesperado entre as duas mulheres parece ser selado dando a ambas uma nova oportunidade.
Os primeiros instantes de Shelley determinam o tom de toda esta longa-metragem que se assume desde cedo com um exemplar de um terror psicológico que contém, ainda assim, fortes elementos de uma realidade sócio-cultural europeia actual que não deixa enganar sobre as várias clivagens que se denotam além fronteiras. Se inicialmente o espectador se concentra naquele espaço idílico em termos naturais mas que, ainda assim, representam um sentimento de isolamento onde, longe de qualquer sinal de modernidade ou até mesmo de vida, os três protagonistas se deixam - e também a nós espectadores - engolir por toda uma natureza que domina o cenário em redor fazendo-nos comparativamente lembrar The Shining, de Stanley Kubrick (1980), cedo as comparações com esta obra ganham forma através de muitos mais elementos deixando sentir que o espaço - per si - tem também ele uma carga energética semelhante a uma alma invisível que se manifesta através dos sentimentos e estados de espírito que provoca nos protagonistas.
O argumento de Ali Abbasi e Maren Louise Käehne é essencialmente um estudo sobre o isolamento - físico e geográfico - de uma jovem mulher que procura um futuro melhor para o seu filho que deixara na sua Roménia natal. Num país severamente atingido por uma crise social e económica sentida desde os dias da queda do comunismo que predominou no país até finais da já ida década de 80, a jovem "Elena" encontra a sua oportunidade num país distante que lhe proporciona uma nova vida... ou pelo menos a sua ilusão. Nos primeiros instantes - os tais da habituação - "Elena" começa a instalar-se num espaço onde sente os limites que a sua liberdade começam a sofrer mesmo que, inocentemente, deles abdique sem pensar que a proposta que lhe é efectuada para uma melhor perspectiva económica seja, entre outros, abdicar da posse de um telefone cuja bateria não pode carregar, de uma televisão que lhe conceda as últimas novidades do mundo - por mais trágica que ele possa ser - conseguindo manter a sua independência de pensamento pela margem mínima que a diferença linguística lhe confere.
A pressão de uma vida nova, de uma possibilidade económica mais abastada e uma invulgar proposta que aceita como um acto de bondade que tem para com a sua agora patroa, cedo se revelam como todos os factores que a aprisionam a um espaço do qual poderá já não conseguir sair. A jovem romena, que rapidamente manifesta uma invulgar proximidade com o casal que lhe deu casa e trabalho, compromete-se com a tarefa maior de ser mãe... por "Louise". Com um filho na Roménia natal por quem se sacrifica como forma de ganhar mais dinheiro, "Elena" parece começar a suportar não um filho mas sim um fardo. De jovem tranquila e relativamente alegre a uma pessoa apagada e que parece ser consumida por uma dor física e mental que lentamente a desgastam e consomem, "Elena" exibe sinais semelhantes a uma depressão e também transformações físicas como se aquilo que estivesse a gerar no seu corpo não fosse uma nova vida mas sim uma doença que a debilita a um ritmo cada vez maior. Mas não é só ela que exibe estas transformações psicológicas... Também "Louise" se transforma lentamente numa mulher mais distante do marido como que desesperada por ser a mãe que até então não conseguira, é "Kasper" que, por sua vez, foge na direcção contrária manifestando uma agora aversão à paternidade que sempre quis. Estará "Elena" numa gravidez saudável ou a gerar algo que nenhum deles está preparado para receber?!
Das manifestações físicas e psicológicas - todas elas violentas - aos elementos naturais que parece dominar o espaço em redor criando um cada vez mais acentuado sentimento de isolamento e solidão àqueles que começam assumidamente a parecer sobrenaturais, o espectador questiona-se se não estará perante outro Rosemary's Baby, de Roman Polansi (1968) onde a loucura se confunde com uma realidade oculta que está prestes a ver nascer o próximo anticristo. No entanto, Shelley deixa ainda a dúvida sobre a pressão financeira a que a jovem "Elena" se vê sujeita na tal desesperada tentativa de uma vida melhor e ainda a uma eventual depressão durante o parto da qual tantas mulheres sofrem num silêncio arrasador, e que só é respondido quando os sinais exteriores desta gravidez se manifestam de forma inequívoca qual "Elena" parece uma jovem num avançado estado de degradação como que algo (ou alguém) se começasse a apoderar do seu corpo sem a sua vontade... poderá "Elena" resistir ou o embrião que carrega precisa da sua energia e vitalidade para sobreviver?
Os sinais de violência pré e pós parto, fazem o espectador perceber que aquilo que ali começa a ganhar vida é um ser que já controla os destinos, vontades e reacções daqueles que o rodeiam. Algo que graças ao ar de uma inocência visível apenas aos olhares de uma mãe - "Louise" - desesperada, consegue minar os comportamentos de quem o rodeia, isolando também esta numa convivência exclusiva onde todo o demais mundo é externo, indesejado e dispensável. "Shelley", de seu nome, chega pronta para dominar um mundo que - aparenta - despreza.
Num estilo de terror que se forma primeiramente graças ao isolamento, depois pela perda de liberdade num mundo economicamente instável onde todos precisam de sobreviver, que tem a natureza como um pano de fundo típico do género que fomenta os pequenos sinais de uma demência (in)voluntária e o sempre presente mal em forma de uma criança não tão inocente como quer dar a parecer, Shelley cria uma invulgar mas apelativa atmosfera que apenas perde pela sugestão relativamente óbvia por não transportar nenhum elemento genuinamente original mas sim, desloca-os para uma realidade escandinava onde os mitos de vikings e de uma força "sobrenatural" parece agora ganhar novos contornos nos braços de uma criança que parece dominar as mentes alheias... logo à nascença e que consegue criar uma atmosfera interessante muito graças à direcção de fotografia da autoria de Nadim Carlsen e Sturla Brandth Grovlen que recupera o imaginário do inverno "bem mais longo que o natural" agravando portanto o tal imaginário de um isolamento já referido.
Não será o candidato mais forte ao Prémio de Melhor Longa-Metragem Europeia mas, ainda assim, não deixa de ser um candidato que certamente terá o seu lugar graças a toda uma mescla de referências do cinema de género que não irão passar despercebidas.
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