Tenemos la Carne de Emiliano Rocha Minter é uma longa-metragem mexicana presente na secção Serviço de Quarto da décima edição do MOTELx - Festival Internacional de Cinema de Terror de Lisboa que decorre até ao próximo dia 11 no Cinema São Jorge.
Mariano (Noé Hernández), é um homem aparentemente obcecado com a ideia de um isolamento num edifício abandonado que lentamente transforma num útero. Quando o casal de irmãos Lucio (Diego Gamaliel) e Fauna (María Evoli) invadem o seu espaço, não só o ajudam como se tornam cúmplices numa espécie de ritual de passagem que Mariano parece querer realizar.
Estaremos perante um já ido fim do mundo ou antes frente ao início de toda uma nova sociedade?
Emiliano Rocha Minter cria uma história apelativa pela sua premissa inicial que coloca o espectador perante um dilema... estaremos a presenciar um sonho ou, por sua vez, a imagem de um futuro apocalíptico onde a Humanidade - ou o que resta dela - sobrevive num espaço que se desumaniza e constrói numa outra realidade.
Tendo esta premissa sempre presente mas nunca respondida até aos últimos instantes desta obra, Tenemos la Carne relata então a convivência entre três almas perdidas - ou não - que se encontram e sobrevivem num mesmo espaço por entre a construção de uma defesa (ou reino) comum e posteriormente tendo em vista a radicalização de comportamentos fruto dessa aparente destruição que um apocalipse criou. À medida que o tempo avança - pelo menos da noção de tempo que o espectador pode atribuir à narrativa em causa - percebemos que os comportamentos deste trio vão degenerando em algo novo, por vezes imoral e certamente contra natura na medida em que os laços que os uniam numa outra realidade são agora questionados e colocados em causa ao ponto da quebra e da ruptura total ser não só uma realidade como iminente. Se inicialmente os dois irmãos "Lucio" e "Fauna" revelam ser dois jovens perdidos num "novo mundo" que ainda não conhecem ou controlam, procurando única e exclusivamente o tal lugar onde podem sobreviver à catástrofe "lá fora", é também certo que os dois jovens denotam todo um comportamento que degenera muito rapidamente muito também graças à mão "inocente" de um "Mariano" preocupado com uma continuidade da obra... e da espécie.
O renascimento - do Homem e de uma nova sociedade - que "Mariano" exibe nos seus comportamentos para com o jovem casal de irmãos poderia - num outro tempo - representar a mão totalitária de um déspota maníaco por fazer crescer uma nova ordem "mundial" que o próprio governasse. De instinto mordaz, ditatorial e com um perverso sentido de transgredir a ordem até então instaurada, este homem insiste em desrespeitar tudo aquilo em que nós - o espectador - acreditamos ser e ter enquanto princípio... A imoralidade, o incesto e até mesmo a profanação são uma constante nos seus actos, comportamentos e ensinamentos aqui tidos como o "correcto" para a construção do tal futuro a iniciar... afinal o próprio útero que tenta recriar dá o mote a esse renascimento - seu, dos outros sobreviventes ou até mesmo da sociedade (...) - e tudo aquilo que presenciamos insiste em desafiar a "ordem" tal como a conhecemos.
Se até aqui a premissa de Tenemos la Carne é inovadora não só pela incerteza quanto ao "lá fora" em que coloca o espectador - afinal todos desejamos ver o que resta do mundo tal como o conhecemos -, é também real que os três protagonistas são aquilo que no "hoje" qualquer um de nós facilmente classificaria como membros de uma qualquer seita cujos propósitos individuais se distanciam milhas do socialmente aceite na ordem - moral, social, cultural e até mesmo económica - em que nos encontramos. Os comportamentos dos protagonistas, semelhantes aos das referidas seitas, deixam o espectador numa incerteza não sobre a destruição desse tal "lá fora" mas sim sobre aquela que resultará dos seus hábitos recém adquiridos que os transportam a toda uma constante imoralidade e que deixa a dúvida sobre a nova sociedade que se pretende alcançar. A forma como Rocha Minter filma esta imoralidade, francamente desnecessária pelo conteúdo sexualmente explícito que roça não o terror (aqui perdido) mas sim o porno gratuito, corrói todo aquele crescendo de fatalidade e destruição que o espectador vinha a observar desde os primeiros instantes e que lançavam sim a dúvida sobre os propósitos de um trio que se deixa levar por uma decadência moral sem paralelo. O conteúdo sexual, até importante no dinamismo da história sobre o "fim" quando contextualizado (afinal como será considerada a continuidade da "humanidade"), perde-se numa linha que oscila (de forma incerta) entre o exibicionismo e o voyeurismo e parece desligar a atenção do espectador sobre os seus pensamentos sobre o fim dos tempos... o que existirá para lá daquele "útero"... mas sim na porno relevância que uma certa linha do argumento parecem querer transmitir.
Com um desfecho que, arrisco dizer, é francamente inesperado mas que faz render o dinamismo alcançado na primeira metade do filme - também graças a uma dinâmica e intensa direcção de fotografia de Yollótl Alvarado que nos leva literalmente às profundezas de um útero -, Tenemos la Carne - mas pouca alma - é um desafiante e transgressor filme que se centra num intenso início e no já referido intenso final, mas que se perde pelo meio com um fio condutor desnecessário para a sua dinâmica e que apenas os três desempenhos determinantes conseguem sustentar... Retirasse-se um ou dois pequenos segmentos desta longa-metragem mexicana e estaríamos (seguramente) perante o mais intenso e mordaz terror que desafia primeiramente os limites da imaginação enquanto o "pós" apocalipse, mas sobretudo pela forma como demonstra e relata a fácil corrupção de uma mente humana menos preparada e disposta a encontrar num extremo o elemento da sua (não) salvação... e para isso... não precisamos do porno gratuito que, estando lá, parece quer dar cor à ideia do renascimento sendo, no entanto, fruto de uma única vontade de domínio sobre o "outro"... porque em terra ardida... o poder corrompe e faz corromper.
.
.
4 / 10
.
Sem comentários:
Enviar um comentário