Versailles de Carlos Conceição é uma curta-metragem portuguesa de ficção que conta com as interpretações de Isabel Ruth e de João Arrais naquela que é uma história de mistério, demência e obsessão.
Miguel (Arrais) chega a uma cabana de praia na companhia de uma mulher mais velha (Ruth). Chegou de ambulância. O comportamento de ambos parece de uma estranha cumplicidade onde ela, seduzida, lhe faz um invulgar pedido.
À semelhança do que já acontecera com Carne (2010) e O Inferno (2011), Carlos Conceição volta a criar uma história onde existe uma evidente relação disfuncional entre os protagonistas. Se em Carne esta relação teve como protagonistas "Jesus Cristo" (Carloto Cotta) e "Violante" (Anabela Moreira) e se em O Inferno esta o foi entre "Rafael" (Ricardo Sá) e "Nico" (Martim Barbeiro), em Versailles os protagonistas apresentam uma sub-entendida relação afectiva e sentimental que, sem nunca ser confirmada, os une.
Implícito às três obras está uma sentida tensão sexual entre estes mesmos protagonistas que vivem problemas de afirmação ou de aceitação da sua sexualidade e, como tal, tornam disfuncionais os relacionamentos que já de si não são aceites em sociedade. Se em Carne toda a sexualidade se prende com uma relação sentimental e sexual entre uma freira católica e Jesus Cristo, numa clara alusão à própria sexualidade de mulheres que se entregam à religião e, como tal, vivem em tabu um tema que apenas secretamente todos imaginam(os), em O Inferno a vivência desta sexualidade consegue ser ainda mais transgressora - e de certa forma hedionda - quando se presencia o jovem despertar sexual e sentimental de uma criança por um jovem adulto que não se inibe de se exibir. Em Versailles, ainda que não exista transgressão mas sim a vivência de uma relação com uma acentuada diferença de idades - e tabu para muitos -, aquilo que marca esta mesma relação acaba por não ser essa questão mas sim o estranho pedido de uma mulher aparentemente demente e que deseja que os seus dias sejam terminados pelo seu companheiro de viagem.
Se o espectador sente a existência de uma relação, não percebendo até que ponto ela é - ou foi - mais íntima, fica no ar a dedução de que pelo menos o foi de forma cúmplice e que a confiança existente entre ambos é de tal forma significativa que o pedido da mulher não poderia ter sido feito a outra pessoa ou de outra forma. A questão da demência, levantada por momentos e comportamentos semelhantes aos de alguém em delírio deixam, no entanto, a compreensão de que quem os está a fazer entende no seu mais íntimo pensamento, de que os seus dias estão a chegar ao fim e de uma forma decadente.
Ela (Ruth), parece apenas sair do seu próprio universo durante breves momentos, nos quais encontra a energia para pedir que ele lhe dê o fim misericordioso que sente merecer... em nome de um passado vivido, de uma memória partilhada, de uma dança que recorda, da paixão - ou cumplicidade - que sentiram. Ela quer o fim no momento em que ele tem ainda todo um futuro onde pode voltar a começar. Compreendendo - ou não - essa sua limitação, ela pede que o fim chegue pelas mãos daquele em quem confia... Aquele com quem partilha o seu palácio à beira-mar - o seu Versailles - é o mesmo que deve presenciar, e intervir, nos seus últimos instantes para os quais precisa perder a sua "cobardia" agindo pela primeira (?) vez como alguém que ela escolheu para ter a seu lado.
Ainda que esta relação nunca seja confirmada como algo mais sensual - ou sexual -, pequenos elementos como a já referida dança, as palavras utilizadas por ela para o descrever - que mais não são do que desafios de carácter - bem como alguma (escondida) percebida nudez levam o espectador a imaginar - por sugestão - de que aquela pequena cabana de praia testemunhou mais do que alguns momentos frívolos entre ambos, e se "Miguel" parece um jovem reservado à espera de algo - ou de um instante - "Ela" (Ruth) parece sair rapidamente da sua demência e pedir a única coisa que parece justa para a sua condição... o fim.
Com uma obra acentuadamente marcada pela temática da sexualidade, desde o tabu etário e religioso passando pelo moral e socialmente proibido sem esquecer o fetiche presente em Boa Noite Cinderela (2014) - que será aqui futuramente analisado - Carlos Conceição cria toda uma obra repleta de momentos que quebram voluntariamente o segredo, o tabu e aqueles assuntos que ninguém ousa comentar. Tratados com uma dignidade invulgar onde preza a história e a construção de personagens física e moralmente complexas em detrimento de um exibicionismo - ou voyeurismo - gratuitos, Conceição firma o seu nome com um conjunto de curtas-metragens - da qual Versailles é a sua mais recente entrega - cravejadas de personagens que vivem num limite muito íngreme entre a realidade e a loucura... Limite (ou limbo) esse do qual parecem não só não querer sair como perceber que é o seu espaço natural. E se de Isabel Ruth pouco mais há a dizer para lá de fenomenal, do jovem João Arrais só resta acrescentar que a continuar assim terá, certamente, um futuro muito promissor.
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8 / 10
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