sábado, 6 de setembro de 2014

Godka Cirka (2013)

.
Godka Cirka de Àlex Lora e Antonio Tibaldi é um documentário em formato de curta-metragem espanhol vencedor do Gaudí, prémio da Academia Catalã de Cinema e que nos transporta para todo um diferente cenário diferente daquele a que estamos habituados a presenciar.
Uma muito jovem pastora somali olha o céu e pensa na sua vida e nos seus deveres enquanto mulher. Como a vida teria sido diferente se ela tivesse nascido rapaz e como todas as oportunidades seriam para ela (ele) uma possibilidade sem fim ou limites.
Lora, Tibaldi e Amina Souleiman escrevem o argumento deste magnífico documentário que não só nos presenteia com um registo íntimo sobre as expectativas de uma jovem rapariga perdida no seio de um país com uma cultura mais distante do que a distância geográfica que nos separa mas, ao mesmo tempo, nos faz questionar sobre o facto dessas diferenças transformarem uma jovem (tão jovem) numa adulta à força com questões tão importantes como aquelas que aqui nos coloca.
Numa sociedade como a nossa estamos habituados às distintas etapas da vida que, delineadas como estão, pressupõem que exista uma juventude, uma adolescência e uma etapa mais adulta onde temos "papéis" específicos a desempenhar. Uma juventude onde desenvolvemos capacidades de compreensão e curiosidades naturais, uma adolescência onde as expectativas se tornam sentimentais e profissionais (a sei tempo) e uma idade adulta onde o âmbito profissional e social se desenvolvem para a afirmação enquanto indivíduos mais ou menos competentes nas escolhas que outrora teremos feito. Aqui, Lora e Tibaldi levam-nos numa viagem onde as questões estão imediatamente definidas a partir do momento em que o sexo da criança que nasce se define. Enquanto homem o papel social dominante caracteriza-se por aquele que gere o grupo, que impõe regras e que se prepara para assumir a chefia de um clã onde, por sua vez, a mulher trabalha, coordena sob as suas ordens e assume o papel de mãe/esposa desde que a conhecem - antes dela própria se conhecer - como tal. Enquanto mulher não lhe é permitido ter sonhos, desejos, ansiedade e muito menos esperanças. Nada do que faça (ou possa vir a fazer) é desconhecido. Todas as suas "funções" - sem qualquer excepção - estão programadas desde o dia do seu nascimento.
A própria noção de família assume contornos diferentes daqueles que os Europeus possuem. As crianças devem sê-lo enquanto tal o mesmo acontecendo com os adultos, e estes devem providenciar o sustento (e sustentabilidade) do grupo enquanto aqui, as jovens raparigas assumem o papel desse mesmo providenciador de sustento enquanto aos homens é-lhes garantida toda uma vida tranquila onde eles sim podem sonhar e esperar algo diferente... "a céu aberto"... sendo este uma possibilidade sem fim. Às raparigas/mulheres o tormento do trabalho precoce, da mutilação genital que as define "finalmente" enquanto mulheres no seu papel de mães é um passo obrigatório que, também em jovem idade, tem obrigatoriamente de ser ultrapassado, estando a educação vedado por ser "dispensável" para o percurso que devem encetar numa clara dualidade entre os deveres e as obrigações do homem versus a mulher.
No entanto Godka Cirka apresenta-nos os anseios de alguém que se atreve a sonhar por algo maior, a desejar outro rumo para a sua vida - ainda que jovem - onde os papéis e as obrigações estabelecidos sejam eventualmente melhores e mais pacíficos, com rituais menos problemáticos e uma vida assumidamente melhor. Uma vida onde possa reencontrar a sua família - a avó que já não recorda e que abandonou a aldeia perdida com a esperança de uma vida melhor que nunca alcançou - e possivelmente para ela algo que a faça olhar para o enorme buraco no céu e lhe mostre as infindáveis possibilidades que o mundo lhe poderá reservar.
Godka Cirka é um fantástico documentário que o espectador consome com curiosidade, com a vontade de conhecer um "mundo" diferente daquele em que nos encontramos e no qual espera, tal como aquela jovem, que o seu rumo possa um dia ser diferente e sem as obrigações que a definem desde a sua nascença apenas por ter nascido do sexo feminino. Emocionante pela sua mensagem, apaixonante pela forma como ela é transmitida, Godka Cirka confere a Lora e a Tibaldi um registo seguro que se afirma pela excelência do seu conteúdo.
.
.
"Voice: When Allah did Earth, Earth looked up and saw an empty hole above."
.
10 / 10
.

Sem comentários:

Enviar um comentário