segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Os Gatos não têm Vertigens (2014)

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Os Gatos não têm Vertigens de António-Pedro Vasconcelos é a próxima longa-metragem portuguesa a estrear ainda este mês de Setembro e que conta com a participação de Maria do Céu Guerra como protagonista.
Rosa (Guerra) perdeu a companhia de Joaquim (Nicolau Breyner), o seu marido, de forma trágica e inesperada. Depois de um aparente luto que lhe retirou a percepção da passagem de tempo e contrariamente à vontade de Luísa (Fernanda Serrano), a sua filha, Rosa decide sair de casa e tentar novamente abraçar a vida mas é assaltada.
Convencida de que tudo perdera, Rosa ganha um novo vizinho no seu prédio... Jó (João Jesus), um dos assaltantes, depois de ter sido expulso de casa pelo pai e ver os seus amigos e mãe virarem-lhe as costas, ocupa o terraço do prédio onde Rosa vive e escreve... Escreve sobre a sua vida e os seus problemas sem saber que, ao mesmo tempo, estava a criar uma nova, e talvez improvável, amizade com a sua "vizinha".
Saber que o realizador António-Pedro Vasconcelos vai lançar uma nova longa-metragem é motivo suficiente para despertar o interesse de qualquer um. Independentemente de terem "caído bem" ou não junto do público de uma forma geral, não nego a minha especial simpatia pelas suas obras que já tive oportunidade de ver desde os recentes Call Girl (2007) e A Bela e o Paparazzo (2010) ou mesmo os mais "antigos" Os Imortais (2003) e O Lugar do Morto (1984). Existe algo nas personagens a que dá vida que cativa o espectador e isto sem referir que criou duas das mais icónicas do cinema português, ou seja, a "Ana Mónica" interpretada por Ana Zanatti em O Lugar do Morto e a "Maria" de Soraia Chaves em Call Girl que, convenhamos, é a força dinamizadora de toda a longa-metragem. Talvez pelo facto de viverem numa certa margem da sociedade. Margem essa que pode ser social ou financeira ou até mesmo cultural como se pode de certa forma constatar com este seu recente Os Gatos não têm Vertigens.
Se em Call Girl tinhamos alguém desejosa de alcançar fama e sucesso, e se em A Bela e o Paparazzo existia alguém que deles queria fugir e alcançar algum anonimato, em Os Gatos não têm Vertingens temos uma história onde o objectivo principal das suas duas personagens principais é poder simplesmente viver na medida em que ambos precisam desesperadamente de encontrar aquela outra metade que complete, e dê sentido, à sua existência não num sentido romântico mas sim de mútua compreensão... aquele "alguém" que se saiba estar sempre ali ao lado nos momentos de uma maior necessidade ou quando os rumos escolhidos possam não ser aqueles que se desejariam. Afinal, quantos de nós não gostariam de ter a tal voz conselheira em tantos momentos em que nos poderemos sentir perdidos?
A improvável amizade que surge entre "Rosa" e "Jó" seria à partida algo de suspeitar: uma mulher mais idosa e sózinha no mundo que tem como amigo - talvez o único - um jovem sem abrigo e que vem de um meio problemático onde os esquemas fazem parte da rede de sobrevivência estava condenada à partida na opinião de todos. No entanto, os dois encontram um caminho comum... ambos precisam de alguém que os compreenda e, quem melhor, do que quem já passou pelos mesmos problemas em contextos históricos e sociais opostos mas que encontram, infelizmente, tópicos em comum. Se "Rosa" não sente a empatia da sua filha por a ter deixado aos cuidados dos pais na altura em que a própria era detida pela polícia política que a impedia de pensar, criando assim uma sensação de falta e de abandono em ambas, não é menos verdade que "Jó" sente esse mesmo abandono por parte de um pai alcoólico e de uma mãe que refez a sua vida esquecendo-o e da qual já fazia parte. Assim, e quase como dois marginais num meio que não os compreende - ou quer compreender - e independentemente da sua diferença de idades, os seus problemas, necessidades e experências complementam-se. Se a "Rosa" falta quem a escute, a "Jó" falta quem o compreenda e nutra algum carinho que nunca sentira.
É nesta Lisboa real mas alternativa e nas ditas "franjas", com uma população que tenta sobreviver a qualquer custo e que diariamente é esquecida - idosos, delinquentes, abandonados e sem-abrigo - que Os Gatos não têm Vertigens se desenrola lentamente, construindo as suas personagens de forma a que com elas possamos encontrar pontos em comum ou, pelo menos, perceber que por detrás de cada rosto existe uma história que nem sempre é feliz. É então que a partir desta noção entra uma nova ideia neste filme mas que infelizmente não é explorada quando ao falar dos problemas de outros tempos com aqueles de crise que hoje se sentem e onde se percebe a crítica (de "raspão") ao Portugal de 2014. O espectador sente a vontade deste reparo mas ele nunca é consumado, pelo menos não como poderia ser (também não é dele que o filme trata), mas permanece a vontade de que o mesmo tivesse sido mais explorado.
A química entre Maria do Céu Guerra e João Jesus é instantânea. Desde o primeiro momento em que contracenam que se sente que são dois amigos em potência e que independentemente de todas as suas diferenças são, no entanto, os pontos que os unem que irão prevalecer. Talvez porque cada um à sua maneira é a encarnação do rebelde dos seus tempos. Se "Rosa" o foi durante a ditadura, "Jó" assim o é pela falta de apoio parental que sentiu. Se um o foi perante a instituição Estado, o outro assim o é perante a da família. Ambos, isolados no seu próprio tempo e premissas, encontram nas experiências em comum a identificação que lhes dá o sentimento de pertença, a amizade e principalmente a hipótese de um futuro melhor e com as oportunidades até então ditas impossíveis.
Mas Os Gatos não têm Vertigens é, para além de uma história de pertença, uma de perda. A perda dos laços tradicionais - os de "Jó" -, dos lugares tidos como garantidos - os de "Rosa" - e da vida supostamente perfeita - a de "Luísa" - demonstrando que mais não são do que ilusões que a certa altura se formaram na cabeça de cada um por serem "comuns", mas perda essa que vem provar que os nossos lugares, amigos e até mesmo família são aqueles que no decurso da vida nos são proporcionados e com os quais criamos a já referida ligação.
Curiosa é ainda a breve abordagem dada à memória, aquela que parece ser também ela garantida mas que constantemente é colocada à prova. A memória de dias felizes ou até mesmo daqueles que fizeram (fazem) parte de nós e que aos poucos são substituídos por outras referências, por outros momentos e situações mas que estão indissociavelmente ligados à formação de cada um, e aqui tão bem recuperados pelos segmentos representados por Nicolau Breyner e Maria do Céu Guerra, e desta com João Jesus. Ao ocupar-se de um jovem perdido no mundo, "Rosa" vai aos poucos esquecendo o fantasma do seu marido e o seu próprio luto passando assim a ter inconscientemente uma nova razão de "ser".
Naquela que será a interpretação feminina mais forte do ano - tendo ou não "concorrência" - Maria do Céu Guerra mostra o seu talento a todo o vapor. Terna, íntima e próxima não só da sua própria personagem como principalmente do espectador que assiste a uma interpretação capaz de sensibilizar pela sua entrega e que cativa num instante, e que tem em João Jesus o protagonista masculino capaz de lhe dar também vida graças ao novo "propósito" que nele encontra.
Seguro, fiel ao espectador e capaz de o prender, Os Gatos não têm Vertigens prova que é possível fazer o tal cinema "comercial" sem que para isso seja necessário cair em lugares comuns e complexos, mantendo uma qualidade narrativa necessária para se contar uma história e as personagens que dela fazem parte.
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"Jó: Vivo num inferno... mas descobri que o inferno tem uma vista fantástica sobre Lisboa."
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8 / 10
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